sábado, 30 de setembro de 2023

Esta tarde na praia de Afife


No sítio de sempre, no lado norte da praia de Afife, entre as rochas, lá estava o Senhor Doutor deitado, o corpo esquálido próprio dos poetas, a sorver a energia que só o sol pode transmitir. Aproxima-nos dele:

— Então Doutor, viu por aí algum rapaz de “camisola verde/Negra madeixa ao vento/Boina maruja ao lado”?

— Nos dia de hoje poucos se sabem vestir. Uns calções esfarrapados, uma t-shirt encarniçada pelo sol e ala que Afife espera por nós. 

— Isto se falarmos em roupa. Porque no que diz respeito às danças tradicionais, bem… aí estamos ainda pior. 

— Pode escrever lá no seu jornal: nem em Santa Marta, nem na Meadela, nem na Areosa, nem em Afife, há dançarino que esteja ao nível de um Domingos Enes Pereira. Julgo não ser necessário dizer mais nada. 

— Pelo que vejo, para o Dr. Pedro Homem de Melo salva-se apenas esta praia em relação ao que a região já foi. 

— Está enganado: nem a praia parece a mesma. Em vez daquela esplanada que era um autêntico miradouro fizeram um largo pejado de paus ameaçadores sem préstimo algum. A ecologia quando é como deve ser não prejudica a qualidade de vida das pessoas. Pelo contrário. 

— Considerando o seu desencanto, hoje não escreveria o poema “Havemos de ir a Viana”?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A terra continua a mesma e as pessoas têm a festa a correr nas veias. Os celtas lá saberão porquê. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

E Camilo a rir disto tudo...



A recente polémica acerca da estátua de Camilo Castelo Branco, erigida em frente à antiga cadeia da relação do Porto, fez-me revisitá-la com o cuidado que o assunto parecia merecer. Olhei-a de todos ângulos, fotografei-a, e procurei reconhecer nela os argumentos em contenda. 


Continuo sem perceber a razão de tanto alvoroço surgido de uma carta subscrita por 37 “notáveis” do Porto e logo atendida favoravelmente pelo presidente da câmara da cidade. Ou muito me engano ou a missiva foi preparada com vagar e intencionalidade calculadas, sob os desinteressados ofícios do Dr. Rui Moreira.


Há, por isso, um eventual ajuste pessoal a envolver a situação. A surpresa reside, apenas, nas personalidades que não pertencem a esta história, alguns de prestígio insuspeito, e que mesmo assim assinaram o referido documento.


Quem olha de perto a obra da autoria do artista plástico Francisco Simões, vê o Camilo (facilmente reconhecível por todos) abraçado a uma mulher despida. Repare-se que a estátua em causa assinala os 150 anos de publicação do Amor de Perdição. É, pois, o conceito de amor e a personalidade do escritor que servem de guia à sua criação. O amor e Camilo. Mais nada.


Ora, não é fácil definir o sentimento que nos submerge na intimidade de outrem, seja através da escrita, da música, das artes plásticas ou de qualquer outra forma de expressão. O amor tem milhentas formas de ser evocado, e isso, em vez de constituir uma amparo para o artista, muitas vezes é apenas razão de dificuldade acrescida. A ventura da polissemia representativa apenas reside na cabeça dos detratores do costume.


Camilo Castelo Branco foi, e é, uma personagem difícil. Filho de um aristocrata que renegou a mãe do futuro escritor por causa da sua condição social (em termos oficiais, Camilo é filho de mãe incógnita), sempre taciturno, corajoso na forma de ser, solitário mesmo quando acompanhado pelas mais importantes figuras da cultura portuguesa do século XIX, dono de uma genialidade única no uso da palavra escrita, polemista temível e, para além disso, necessitado de dinheiro a vida toda.


Pois é este homem, artista da cabeça aos pés – solitário como a sua vocação de escritor pressupõe – que procurava nas mulheres a proteção e o colo de que sempre necessitou. Repetindo, deste modo, um padrão de comportamento reconhecível em quase todos os colegas de ofício, nacionais ou não.


Será então Ana Plácido apenas mais uma mulher-amante, igual a todas as outras que veio a abandonar? Obviamente que não: Plácido foi, durante muito tempo, alguém inatingível na vida de Camilo, por ela sofreu horrores, veio a ser preso, até que a amada ascendeu ao grau máximo a que um homem dependente (à luz do modo de viver no século XIX) podia aspirar identificar na sua companheira: a esposa, a mulher e a mãe.


Não é, por todas estas razões, Ana Plácido a mulher retratada na estátua. Ou melhor, também é, juntamente com as outras a que Camilo se entregou. Mas mais do que alguém em concreto, quem ali está é o rosto e os seios e o regaço que o acolheram por esse norte fora em noites de grande intranquilidade.


Por isso é que o escultor Francisco Simões retratou os dois seres metidos num invólucro a fazer lembrar o útero ou a casca de um ovo, dessa forma isolados do mundo cá fora, ocultos de tudo e de todos – a mãe-mulher a salvá-lo dele mesmo.


Não sei se Rui Moreira aceita esta minha interpretação. O que eu sei é que o comportamento de pequeno ditador que evidenciou durante este caso constituiu o momento mais triste da sua passagem pela câmara do Porto.

domingo, 10 de setembro de 2023

As cores do dia já quase noite

















A noite chegou à cidade. Inexorável acerca da vontade alheia. Cumprindo o rigor da determinação da natureza. É hora de novas cores substituírem as outras cansadas. De o amor dos namorados da tarde de Domingo transformar-se em algo privado. A intimidade passa a comandar as relações. Os corpos acobertam-se sob a penumbra oportuna. A mulher sorri o homem emudece perante a solenidade do momento o céu entende-os. Vão ser felizes nas horas que aí vêm.

domingo, 27 de agosto de 2023

Vou ser biomédico (ou bioengenheiro, ainda não sei bem...)



Não digam a ninguém, mas este fim-de-semana fui admitido na faculdade de engenharia e no instituto de ciências biomédicas Abel Salazar, na cidade do Porto. Vou estudar num curso que é leccionado pelas duas instituições de ensino. Área de ciências, portanto.


Sou o primeiro da família em muitos anos a largar, ainda que de modo provisório, as letras. O mundo tecnologizado à força da não sobrevivência económica a isso me obriga. Mas nunca deixarei de escrever. Se não o fizesse nada mais faria sentido nem sequer a vida. Até porque não entenderia coisíssima nenhuma. Nem de mim nem dos outros. 


Entretanto vou aprender. Há muitas coisas que quero descobrir. 


Sem nunca perder de vista o saco azul onde se guarda o dinheiro. Procurei entre os cursos aquele que mais proventos me pudesse proporcionar em termos profissionais. A carreira médica parece que está a ser transformada em qualquer coisa de parecido com a dos professores, a Filosofia já não garante verdade nenhuma, a Literatura está lotada de escritores-promessa, resolvi então escolher Bioengenharia.


Eu explico aos mais surpreendidos: vou rejuvenescer o rosto das senhoras da Foz e do Monte Estoril com pele nova produzida a partir das moléculas delas mesmo. Querem melhor? Quem é que está a telefonar, D. Lurdinhas? O gerente da Caja Azul? Diga que não estou. Fui depositar dinheiro ao Banco da Letónia.


Vai ser assim o tempo todo.


domingo, 20 de agosto de 2023

Viana em festa



                
                    
                                             
                                                                                                                                                                             


Ao fim da tarde, na Praça da República, Viana reúne-se para dançar ao som das concertinas o vira, o malhão e a gota. Gente de todas as idades, de diferentes condições económicas (e não só), irmanada na vontade de festejar o Agosto da festa. 

É assim a capital do Alto-Minho, briosa dos seus costumes naquela que é considerada a maior romaria portuguesa. 

Um dado curioso: nada disto dá mostra de abrandamento de ano para ano. Pelo contrário. 

Mesmo entre os jovens há renovação constante, os bebés vestidos com o traje à vianesa, as crianças a tentarem dançar as músicas tradicionais de Viana. 

 

Fotografias: FSBB

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Voltar a ser de Viana



Os dias passam iguais, clientes a discutir connosco, os filhos a reclamarem atenção,  o trânsito em fila compacta, os vizinhos do 6º esquerdo a contestarem a má educação do prédio e, de repente, é Agosto, a cidade grande a entrar de férias, as praias do Algarve reclamadas pelos miúdos na primeira semana e, por fim, Viana.


A Romaria da Nossa Senhora D’Agonia está quase a começar. Quem não tiver vivido no Alto-Minho não entende nada disto. Sorri da preconceituosa rusticidade destas terras e abandona-se por momentos na marquise que delimita a gaiola onde vive.


Pensa que sabe e não sabe nada. Aqueles que não se relacionam, nem que seja em pensamento, com o espaço, o sítio onde fomos e onde, de algum modo, sempre seremos, não se conhecem. A identidade que passamos a vida a procurá-la, quase sempre sem sucesso, fica coxa, amputada da razão de ser.


Assumir a identidade de ser de Viana no mês da festa é o melhor que nos pode acontecer. Não pela festa propriamente dita, mas pelas ruas que voltamos a percorrer e pela visão dos rostos dos homens e das mulheres com quem partilhamos dias e noites, muitas vezes sem os conhecer, mas que o sentimento de geração aproxima hoje mais que antes.


Alguns continuamos a acompanhar na televisão a debitar opiniões sobre tudo, outros vemo-los nas inaugurações apadrinhadas pelo senhor presidente ou pelos membros do governo. Muitos esqueceram Viana. O mundo deles passou a ser outro e nele não tem lugar o chão verde e azul da terra original.


Idiotas. Não percebem o básico nestas coisas da identidade. O reconhecimento nacional acontece se houver antes o do lugar onde se nasceu. Só é considerado ilustre aquele que tem história, tem tempo percorrido nos caminhos de casa, da escola, dos amores primeiros. Dessa forma, poderá acalentar o desejo de ser recebido com banda de música e foguetes no largo principal. 


Há tantos que assim não fizeram e que caíram no esquecimento regional e nacional. O melhor é nem referir nomes porque seria uma lista muito extensa.

 

Mas para além das ruas revisitadas e das pessoas que frequentavam os mesmos sítios há uma realidade cuja importância ultrapassa as outras: a família e a sala e os corredores e os quartos da casa-mãe. E os homens e as mulheres, ainda novos, que habitavam aqueles espaços. 


Nas marquises das cidades grandes não vivem as pessoas da casa de família. A maioria nem saberia utilizar o metro que vai do Terreiro do Paço aos Restauradores. E, no entanto, foram eles que nos criaram e ensinaram tanta coisa.


As Festas da Senhora D’Agonia também servem para isto. Para os reencontrar, vivos ou mortos, eles estão lá de todas as formas possíveis. Nunca nos abandonarão enquanto houver Viana, a Amália cantar Homem de Melo, os barcos continuarem a sair da barra levando de passeio os santos da sua devoção, as mulheres jovens de pele bronzeada da praia envergarem os trajes de suas mães.


E assim prossegue Viana. Terra a quem a natureza proporcionou as melhores condições possíveis para o desenvolvimento. Infelizmente, décadas de inação e de decisões políticas erradas condenaram a cidade e a região à estagnação, isto se tivermos em conta o crescimento das outras cidades minhotas. De todas. 


Por isso é que desta vez resolvi escrever sobre os vianenses que vivem noutras terras. A especificidade dos atuais cursos universitários – os que Viana não tem –, a maior especialização requeridas pelas grandes empresas – as que Viana (salvo raras exceções) apenas conhece pelo que a televisão mostra – conduziram à transferência do viver das pessoas para as casas prolongadas pelas marquises.


Um dia destes ainda vou de TGV com a Senhora D’Agonia em 1ª classe até à estação de Viana.

 

(Estou muito reconhecido ao Dr. António Pimenta de Castro – a quem o destino recente fez dele uma espécie de irmão meu – por, entre outras coisas, ter escrito um texto sobre o meu querido pai (morreu em 2022), jornalista e entusiasta de Viana e do Alto-Minho, na publicação A Falar de Viana, coordenada pelo amigo e diretor da Biblioteca Pública de Viana do Castelo, Dr. Rui Faria Viana, a quem também agradeço)

domingo, 13 de agosto de 2023

Não sou a estrela que guia a Carminho


— A querida sabe bem o quanto a aprecio como mulher e fadista, mas desta vez exagerou na canção que me dedicou: eu não sou “a estrela que guia” o seu coração. Infelizmente, só sei trazer a noite ao amor das pessoas. De qualquer forma, se vir a D. Lurdinhas, fuja…

sábado, 22 de julho de 2023

Inauguração do Verão


Ó p’ra mim a inaugurar o Verão. Acabo de me sentar na esplanada da praia, olho em volto, vejo moscas em pleno voo de reconhecimento, duas jovens nórdicas com as faces avermelhadas, cabelos cor d’ouro, lindas de morrer afogado no mar do desejo — a baterem convictas nas pernas, na tentativa de matarem os vis insectos. 
Olho para a cena e percebo que alguma coisa não condiz com o imaginado pelo português médio.
Não sei bem o quê. 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Os professores


Vêm das berças, das casas humildes de trabalhadores que investiram tudo nos filhos para um dia serem respeitados, cumprimentados por todos, o senhor abade a falar com eles como se fossem iguais.

Estudaram muito, nunca tinham lido livros só com palavras, deram tudo de si, pagaram para ir trabalhar para o Alentejo, Algarve — os filhos, os maridos e por último os casamentos a ficarem para trás.

Ganhavam muito mal mas os mais velhos sempre a incentivá-los para não desistirem: “a partir do oitavo escalão (numa carreira de dez) então começará a valer a pena”. Era um investimento de longo prazo, a reforma ia compensá-los.

E eles a acreditarem. Até que chegou a Maria de Lurdes Rodrigues, o José Sócrates e o Partido Socialista — e os professores nunca mais tiveram descanso: insultados na comunicação social, na opinião pública, no comportamento desbragado dos alunos ansiosos por deixarem de o ser.

E os inimigos da escola para todos a conseguirem atingir os seus intentos. Actualmente, os professores que atingem a reforma, na sua quase totalidade, não têm forma de pagar o mais miserável dos lares para velhos. Só com a incerteza da ajuda da Segurança Social. Partiram a espinha a esses malandros. A carreira onde ingressaram já não existe. E eles, obedientes, a aceitarem tudo.

Desta forma, o estado português pôde poupar muito dinheiro. E a escola do futuro, dos nossos filhos e dos nossos netos, o que vai ser dela? Calma, cada coisa a seu tempo, ou se investe na escola privada ou então nos professores brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses.

Esse problema já não é nosso.

O tempo da escola ficou para trás, os cabelos brancos fazem-nos interessar pela exploração do hidrogénio verde e do lítio, pelo crescimento da bolsa de Madrid e o florescimento dos offshores do Panamá. O resto não interessa nada.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Luís Aleluia


No tempo em que a noite era o meu dia ceava eu num restaurante de noctívagos, deveriam ser duas da manhã. Na mesa ao lado estava o menino Tonecas acompanhado pela trupe que logo se via ser aquela com quem com ele trabalhava. Comiam depois de terem dado um espetáculo, percebia-se.

Do aluno batoteiro da televisão, nada. Era o actor Luís Aleluia que ali estava, notava-se no rosto cansado, taciturno, em silêncio o tempo todo. Palhaço triste como todos os que cumprem aquela função. Metido consigo mesmo depois de ter levado às gargalhadas a plateia durante a representação.

Aos nove anos, o pai divorciado e doente no Caramulo morreu e é nessa altura confiado à Casa do Gaiato de Setúbal. Assegura que aqueles foram os melhores tempos que viveu. Aprendeu que é em comunidade, uns com os outros, que tudo vale a pena. 

Mas as marcas ficaram. Nota-se no medo da solidão – embora precise dela como pão para a boca. É como se nunca tivesse deixado de ser o menino carente, abandonado pela ventura de ser feliz.

Por isso é que se dedicou à causa dos outros ajudando um sem número de organizações solidárias. Procurou o bem e raramente o encontrou em si. Deu alegria aos outros e só. A ferida aberta, agora sabemos, nunca se fechou. 

Nem mesmo na passada sexta-feira, dia vinte e três. Apenas foi para intervalo. 

Num ímpeto montou o cavalo negro e galgou os horizontes à procura da paz apenas reconhecível na paisagem verde do Caramulo.

domingo, 25 de junho de 2023

A partida


“Mas que mania esta gente tem de me achar esquisito. O que é que tem de mal estacionar o veículo de locomoção ao lado da esplanada onde me sentei a beber uma Coca-Cola Zero? Provavelmente é por não ser um Opel Corsa ou um Renault Megane. Mas agora também somos obrigados a escolher o de sempre, que não destoe daquele que a D. Engrácia Antunes — vizinha e bisbilhoteira-mor do bairro onde moro — comprou há uns tempos?
Vou abandonar por umas semanas este pó puxado a muito sol. Ibiza me espera. ‘Mas lá não podes acompanhar as reuniões das comissões de inquérito’, disse-me preocupado um colega. Quero lá saber dos Costas, do Montenegro e da ‘entourage’ imbecil que os acompanha. À minha espera está a viscondessa de Ferrol e a sua linda descendente. E também a areia e o mar e a noite, meus velhos conhecidos.
Ligar os motores, o painel de instrumentos diz que está tudo ok, partida — que já só vejo a gente ainda mais pequena que costume. Vou encontrar-me e já volto.”

sábado, 10 de junho de 2023

10 de Junho


Castanheiro milenar em Lagarelhos, Vinhais. Catorze metros de diâmetro, pode-se entrar dentro dele e namorar. Árvore de Interesse Público. Testemunho da perenidade da natureza.

Hoje passei por ele e resolvi sentar-me num dos bancos a olhá-lo.


No dia das efemérides. Uma que corresponde a uma ideia geral, a um conceito que há novecentos anos tem vindo a fazer caminho – a maior parte das vezes de forma sinuosa. Refiro-me, naturalmente, a esse belo país, dolente e magistral, remediado e opulento, que se chama Portugal.


A outra que se refere à mais concreta das realidades, de abrangência pessoal e, por isso, intransmissível. Rosa-dos-ventos da minha vida, esteio seguro num percurso inconstante, garante de futuro onde parece haver só passado.


A primeira, utopia transformada em terra e mar. A segunda, mulher que nasceu para ser corpo e mente materializados numa utopia em formação. Saber-fazer em substância viva. 


Uma que vem de, outra que vai para – ambas com o tempo como horizonte de explicação. 


As duas comemoram em 10 de Junho o seu dia. Amo uma e outra. Mais do que isso: elas são o leitmotiv da minha vida. A ideia e a realidade. Às vezes o contrário. E aí reside o assombro de tudo isto.


Adeus, castanheiro – história e fruto, sombra e alimento. E sobrevivência.


Feliz dia, meus amores. 

sexta-feira, 26 de maio de 2023

No primeiro aniversário da morte do meu Pai


Dia de escrever com o meu pai no escritório da Casa da Pata, onde eu nasci. “Pai, hoje vamos falar de quê?”. “Vamos falar dos dois, de mim e do Serginho que tem uma vida toda pela frente”.

Na altura não percebi. Para mim o meu pai viveria para sempre, pelo menos tanto quanto eu. Mas não disse nada. Era preciso escrever com urgência, os leitores estavam por certo à espera. 

“Pai, eu quero viver contigo, com a mãe e com o Rogério”, não resisti em dizer. O meu pai olhou para mim, sorriu e não disse nada. 

Folheou o velho álbum de fotografias e pegou numa. Era ele a passear com um amigo numa rua do Rio de Janeiro, à noite, tinha dezasseis ou dezassete anos, os dois a imitarem o Visconde de Valmont e o Don Juan. Mas sobre isso ainda eu não sabia nada. 

* * *

 

“Vamos então ser, uma vez mais, escritores. Olhando para o rosto deste dois solitários rapazes, o que vês, Serginho?”, perguntou-me. “Sonho, vontade de chegarem a um sítio que não conheço”, disse num ápice, quase sem pensar. 

“É isso mesmo, para quem como o teu pai havia chegado há pouco tempo de Viana, sozinho num navio grande, a cidade do Rio de Janeiro apresentava-se como um mundo novo”.

A maioria das coisas que ele me dizia eu não entendia, mas, ainda assim, gostava daqueles dias de escrita na Casa da Pata. 

“Vamos lá então começar, anunciou o meu pai:

À noite, às ruas eram palmilhadas por aqueles que procuravam nos botequins e outros estaminés a vontade de matarem o desejo de carinho, nem que fosse apenas de alguma atenção.”

(…)

***

“Serginho, faz hoje um ano que recomecei essa viagem iniciada por volta dos meus dezasseis anos. Naquela altura descobri um mundo novo e um miúdo que eu próprio desconhecia. 

Interrompi esse devaneio para vos amar e ajudar a criar um grupo novo de pessoas capazes de prosseguirem o caminho. Esse grupo é coeso, tem gente de valor, já ninguém tem razões para se perder no percurso. 

Chegou, por isso, a altura de recomeçar a viagem. Estou neste momento nas esplanadas de Guanabara a olhar para ti, meu filho. Domingo vou a Istambul ver como as coisas correm depois das eleições. 

Mas sempre atento à tua vida. Pronto para actuar se necessário for. Embora acreditando sem hesitação em ti. 

Os escritores sabem quase sempre tudo. 

Um beijinho do teu pai."

 

(No dia do primeiro aniversário do passamento de Matias de Barros)

 

domingo, 21 de maio de 2023

Foi para Lisboa

                         

Desde sempre a viu como uma dádiva dos céus. Não tinha jeito com as mulheres, fechava-se em casa enquanto os colegas do liceu dançavam nos bailes que faziam nas casas uns dos outros. E, no entanto, ali estava ela, deitada na cama junto a si, a Teresa Margarido, a miúda mais bonita da sua geração.

Ainda hoje não percebia a razão de ela ter aprovado a ideia do casamento, falavam nos intervalos das sessões do cineclube que ambos frequentavam, o sogro fazia gosto no enlace, e assim aconteceu.

Tiveram dois filhos, a Carla de cinco anos, e o Eduardo de três. Ela arranjou emprego no escritório de uma notária, ele num gabinete de contabilidade a trinta quilómetros da casa que alugaram.

E tudo corria com o vagar habitual até ao dia em que a notícia do cancro da Teresa caiu que nem uma bomba. O caminho do hospital passou a ser o dela nos dias das consultas e dos tratamentos, enquanto o marido percorria a estrada que o levava ao emprego sem se dar conta donde estava ou o que ia fazer. 

 

Há dias, a Teresa foi fazer exames ao IPO de Coimbra, a uns cem quilómetros de Viseu, cidade onde vivem, a fim de saber se o cancro alojado no esófago se tinha espalhado pelo corpo. O médico que a acompanha na doença desde o diagnóstico inicial, o Dr. Romeu Bessa, telefonou ao marido a meio da tarde:

“Há uma pequena progressão da doença ao nível da traqueia. Mas nada que não possa ser tratado. Vai precisar é de se submeter a sessões de quimioterapia neste hospital, a radioterapia que faz em Viseu já não é suficiente”.

Quando, noite feita, a Teresa voltou a casa, o marido esperava-a sozinho, os filhos dormiam nos seus quartos, a sala estava iluminada de forma ligeira e em silêncio respeitoso. Ela olhou em volta, avançou pensativa, o vestido desenhando-lhe o corpo como se fosse dele desde sempre, o tecido a ondular num sorriso faceiro sobre as pernas, e sentou-se no sofá em frente do marido.

“Dia difícil o de hoje!”, disse ele como se houvesse necessidade de falar alguma coisa.

“O que vai ser de nós e dos nossos filhos, Mário?”, a voz a traí-la na vontade de parecer serena.

“O Dr. Romeu telefonou-me a dar a notícia. Ele foi contigo ao IPO? Fiquei sem perceber o que fazia ele lá”, a curiosidade a querer ser finalmente satisfeita.

“Tem sido incansável comigo. Fez questão em estar lá, em acompanhar-me nos exames, sabes como é entre médicos, conhece aquela gente toda, muitos estudaram com ele”, respondeu-lhe de forma sincera.

O diálogo tornou-se ausente durante algum tempo. Os dois pareciam absortos em si e na apatia da casa adormecida. Havia tanta coisa em que pensar e pouco para dizer. Ambos conheciam a gravidade do dilema que surgiria com o provável agravamento da doença.

“Não vai acontecer nada, tenho a certeza..., mas também não saberia o que fazer sozinho com as duas crianças, sabes disso”, o marido a balbuciar medos que ultimamente não o largavam. “Além de que nada mais faria sentido para mim”, ganhou finalmente coragem para o dizer.

Era um homem derrotado aquele que se afundava no sofá. A timidez de sempre a limitá-lo, as palavras a tornarem-se difíceis de ser materializadas, ao mesmo tempo que olhava, a espaços largos, para aquele ser muito belo que estava consigo na sala de estar.

“Não penses mais nisso, por agora. Amanhã é o casamento da Isa, temos de acordar cedo. Vou deitar-me”, disse ela por fim.

A noite pareceu interminável ao Mário. Mal pregou olho aquelas horas todas. A morte a rondar a casa, os colegas de trabalho a perguntarem notícias da Teresa, o cinismo a desenhar a expressão do rosto das pessoas, as batas brancas a cruzarem-se continuamente, o nome da doente a ser chamado pelos altifalantes, o Dr. Romeu a olhar os resultados do TAC que anunciavam a doença.

E cismava em tudo aquilo. Hesitava nos pormenores, vacilava perante certezas que já não o eram, investia numa esperança sem retorno. Mesmo em relação ao Dr. Romeu Bessa, o médico da Teresa, a apreciação que fazia dele oscilava entre a de um anjo que apareceu para os salvar e a de um rival cujo único objetivo se resolvia no roubo da sua mulher. 

Andava naquilo há dias e dias, a sofrer como um cão que todos enxotam.

Adormeceu era quase manhã. Pouco tempo depois, as vozes das crianças já se faziam ouvir. A mãe preparava-os para o banho, a festa estava prestes a começar, eles sabiam-no.

Após um período de hesitação, o Mário acabou por se se levantar e dirigiu-se ao sítio de onde vinham os risos dos miúdos. Eles estavam sentados na banheira, um em frente ao outro, e brincavam com a água. O Eduardo foi o primeiro a receber o tiro de caçadeira que se alojou na testa. De seguida, a Carla de esgar pronunciado num rosto de criança a pedir clemência, morreu baleada no pescoço. O sangue dos dois jorrou para todos lados, a parede branca tornou-se vermelha. 

Os gritos da mãe ouviam-se cada vez mais distintamente. A Teresa corria pelo corredor em direção aos filhos, o Mário saiu da casa de banho e assim que a viu disparou duas vezes. O chumbo entrou pelo vestido colado ao corpo até se depositar no peito. Os olhos dela, muito abertos, pareciam perguntar a razão daquilo tudo.

A espingarda herdada do pai caçador estava quase a dar por finda a desgraça, faltava apenas o assassino. O Mário Boaventura virou a arma para a sua boca e puxou o gatilho...

“Não, chega, não participo mais nisto. Se quer um narrador vai ter de arranjar outro. O massacre da família Margarido aconteceu há mais de trinta anos. Deixe-os em paz que bem precisam. Estão os quatro juntos, na mesma campa, por fim sossegados”.

“O escritor sou eu. Não é a primeira vez que trabalha comigo, sabe que sou a favor da crueza dos factos, sejam eles ou não dolorosos”.

“Mas acha mesmo que na sociedade atual, em que os indivíduos procuram no coaching e no yoga o bálsamo para as suas insuficiências, alguém quer ler histórias de morte coletiva?”. 

“Está a esquecer-se de uma coisa”, olhei-o enquanto falava, “a realidade ultrapassa em criatividade a própria ficção. E é disso que as pessoas comuns necessitam, a de vivenciarem situações que podem acontecer no mundo vulgar a que pertencem. Exorcizando, desse modo, os medos que não os largam”. 

“Até pode ser, mas é bom não esquecer a mudança atual na forma de interpretar.” – respondeu o narrador – “A vida é totalmente outra, mesmo o ímpeto de ler é mais fugaz e diferente. Por isso é que os temas têm de ser apelativos. E, se possível, retemperadores também”.

Observei-o nos traços do rosto e pareceu-me, a pouco e pouco, recuperado para o enredo final. Mesmo assim resolvi propor que reescrevêssemos o final da história a quatro mãos, convite prontamente aceite desde que a matança da família não chegasse a acontecer. Acedi contrafeito.

Quis ser ele a começar e propôs que eu a terminasse.

“Vamos lá então”.

 

No casamento, o Mário esteve mais bem disposto do que seria de esperar. O ambiente primava pela descontração, as pessoas eram as de sempre nestas ocasiões, a exceção resumia-se ao Dr. Romeu Bessa, convidado pela noiva.

O médico mostrou-se simpático com todos, falou com a Teresa e o marido, espalhou pelas mulheres presentes palavras galanteadoras recebidas com risinhos pela assistência.

Três dias depois, o Mário quis conversar com ele no consultório do hospital, o rosto dos dois a revelar  a gravidade da ocasião, o Dr. Romeu calado à espera do veredicto, o marido a anunciar-lhe o iminente envio da participação para a Ordem dos Médicos – o assédio moral à Teresa, a intromissão do clínico no ambiente familiar da doente, a alteração do modus vivendi do núcleo de apoio e o sofrimento que poderia vir a causar entre os seus membros, a servirem de argumentação ao documento.

O clínico, em frente àquele homem a sentir-se atingido no orgulho, diz por fim:

“O Sr. Boaventura quer fazer alguma sugestão sobre o tratamento hospitalar da sua mulher?”.

“O doutor vai falar com o melhor médico do IPO de Coimbra, ele vai passar a seguir a Teresa e eu nunca mais o quero ver perto de um familiar meu” – o rosto do Mário a mostrar a firmeza com que desde muito novo aprendeu a provocar respeito nos outros.

Poucas semanas depois, o pedido de destacamento do Dr. Romeu para um dos hospitais de Lisboa veio deferido e o Professor Avelino Chora fez uma cirurgia difícil à Teresa.

A convalescença decorreu em casa acompanhada pela família. Quando se achou restabelecida, suficientemente forte para o que havia de vir, a Teresa pegou nos filhos e rumou à capital portuguesa para ali viver.

Com o patrocínio do sogro, já depois da debandada da mulher, o marido abriu um escritório de contabilidade em Viseu que viria a proporcionar-lhe desafogo financeiro. Ao mesmo tempo, matriculou-se em Psicologia – uma área de estudos que sempre o fascinou –  na Universidade Católica daquela cidade. Ali conheceu a sua professora de inteligência emocional, com quem viria a casar.  

Continuam todos eles à espera do amor.