Ainda hoje não percebia a razão de ela ter aprovado a ideia do casamento, falavam nos intervalos das sessões do cineclube que ambos frequentavam, o sogro fazia gosto no enlace, e assim aconteceu.
Tiveram dois filhos, a Carla de cinco anos, e o Eduardo de três. Ela arranjou emprego no escritório de uma notária, ele num gabinete de contabilidade a trinta quilómetros da casa que alugaram.
E tudo corria com o vagar habitual até ao dia em que a notícia do cancro da Teresa caiu que nem uma bomba. O caminho do hospital passou a ser o dela nos dias das consultas e dos tratamentos, enquanto o marido percorria a estrada que o levava ao emprego sem se dar conta donde estava ou o que ia fazer.
Há dias, a Teresa foi fazer exames ao IPO de Coimbra, a uns cem quilómetros de Viseu, cidade onde vivem, a fim de saber se o cancro alojado no esófago se tinha espalhado pelo corpo. O médico que a acompanha na doença desde o diagnóstico inicial, o Dr. Romeu Bessa, telefonou ao marido a meio da tarde:
“Há uma pequena progressão da doença ao nível da traqueia. Mas nada que não possa ser tratado. Vai precisar é de se submeter a sessões de quimioterapia neste hospital, a radioterapia que faz em Viseu já não é suficiente”.
Quando, noite feita, a Teresa voltou a casa, o marido esperava-a sozinho, os filhos dormiam nos seus quartos, a sala estava iluminada de forma ligeira e em silêncio respeitoso. Ela olhou em volta, avançou pensativa, o vestido desenhando-lhe o corpo como se fosse dele desde sempre, o tecido a ondular num sorriso faceiro sobre as pernas, e sentou-se no sofá em frente do marido.
“Dia difícil o de hoje!”, disse ele como se houvesse necessidade de falar alguma coisa.
“O que vai ser de nós e dos nossos filhos, Mário?”, a voz a traí-la na vontade de parecer serena.
“O Dr. Romeu telefonou-me a dar a notícia. Ele foi contigo ao IPO? Fiquei sem perceber o que fazia ele lá”, a curiosidade a querer ser finalmente satisfeita.
“Tem sido incansável comigo. Fez questão em estar lá, em acompanhar-me nos exames, sabes como é entre médicos, conhece aquela gente toda, muitos estudaram com ele”, respondeu-lhe de forma sincera.
O diálogo tornou-se ausente durante algum tempo. Os dois pareciam absortos em si e na apatia da casa adormecida. Havia tanta coisa em que pensar e pouco para dizer. Ambos conheciam a gravidade do dilema que surgiria com o provável agravamento da doença.
“Não vai acontecer nada, tenho a certeza..., mas também não saberia o que fazer sozinho com as duas crianças, sabes disso”, o marido a balbuciar medos que ultimamente não o largavam. “Além de que nada mais faria sentido para mim”, ganhou finalmente coragem para o dizer.
Era um homem derrotado aquele que se afundava no sofá. A timidez de sempre a limitá-lo, as palavras a tornarem-se difíceis de ser materializadas, ao mesmo tempo que olhava, a espaços largos, para aquele ser muito belo que estava consigo na sala de estar.
“Não penses mais nisso, por agora. Amanhã é o casamento da Isa, temos de acordar cedo. Vou deitar-me”, disse ela por fim.
A noite pareceu interminável ao Mário. Mal pregou olho aquelas horas todas. A morte a rondar a casa, os colegas de trabalho a perguntarem notícias da Teresa, o cinismo a desenhar a expressão do rosto das pessoas, as batas brancas a cruzarem-se continuamente, o nome da doente a ser chamado pelos altifalantes, o Dr. Romeu a olhar os resultados do TAC que anunciavam a doença.
E cismava em tudo aquilo. Hesitava nos pormenores, vacilava perante certezas que já não o eram, investia numa esperança sem retorno. Mesmo em relação ao Dr. Romeu Bessa, o médico da Teresa, a apreciação que fazia dele oscilava entre a de um anjo que apareceu para os salvar e a de um rival cujo único objetivo se resolvia no roubo da sua mulher.
Andava naquilo há dias e dias, a sofrer como um cão que todos enxotam.
Adormeceu era quase manhã. Pouco tempo depois, as vozes das crianças já se faziam ouvir. A mãe preparava-os para o banho, a festa estava prestes a começar, eles sabiam-no.
Após um período de hesitação, o Mário acabou por se se levantar e dirigiu-se ao sítio de onde vinham os risos dos miúdos. Eles estavam sentados na banheira, um em frente ao outro, e brincavam com a água. O Eduardo foi o primeiro a receber o tiro de caçadeira que se alojou na testa. De seguida, a Carla de esgar pronunciado num rosto de criança a pedir clemência, morreu baleada no pescoço. O sangue dos dois jorrou para todos lados, a parede branca tornou-se vermelha.
Os gritos da mãe ouviam-se cada vez mais distintamente. A Teresa corria pelo corredor em direção aos filhos, o Mário saiu da casa de banho e assim que a viu disparou duas vezes. O chumbo entrou pelo vestido colado ao corpo até se depositar no peito. Os olhos dela, muito abertos, pareciam perguntar a razão daquilo tudo.
A espingarda herdada do pai caçador estava quase a dar por finda a desgraça, faltava apenas o assassino. O Mário Boaventura virou a arma para a sua boca e puxou o gatilho...
“Não, chega, não participo mais nisto. Se quer um narrador vai ter de arranjar outro. O massacre da família Margarido aconteceu há mais de trinta anos. Deixe-os em paz que bem precisam. Estão os quatro juntos, na mesma campa, por fim sossegados”.
“O escritor sou eu. Não é a primeira vez que trabalha comigo, sabe que sou a favor da crueza dos factos, sejam eles ou não dolorosos”.
“Mas acha mesmo que na sociedade atual, em que os indivíduos procuram no coaching e no yoga o bálsamo para as suas insuficiências, alguém quer ler histórias de morte coletiva?”.
“Está a esquecer-se de uma coisa”, olhei-o enquanto falava, “a realidade ultrapassa em criatividade a própria ficção. E é disso que as pessoas comuns necessitam, a de vivenciarem situações que podem acontecer no mundo vulgar a que pertencem. Exorcizando, desse modo, os medos que não os largam”.
“Até pode ser, mas é bom não esquecer a mudança atual na forma de interpretar.” – respondeu o narrador – “A vida é totalmente outra, mesmo o ímpeto de ler é mais fugaz e diferente. Por isso é que os temas têm de ser apelativos. E, se possível, retemperadores também”.
Observei-o nos traços do rosto e pareceu-me, a pouco e pouco, recuperado para o enredo final. Mesmo assim resolvi propor que reescrevêssemos o final da história a quatro mãos, convite prontamente aceite desde que a matança da família não chegasse a acontecer. Acedi contrafeito.
Quis ser ele a começar e propôs que eu a terminasse.
“Vamos lá então”.
No casamento, o Mário esteve mais bem disposto do que seria de esperar. O ambiente primava pela descontração, as pessoas eram as de sempre nestas ocasiões, a exceção resumia-se ao Dr. Romeu Bessa, convidado pela noiva.
O médico mostrou-se simpático com todos, falou com a Teresa e o marido, espalhou pelas mulheres presentes palavras galanteadoras recebidas com risinhos pela assistência.
Três dias depois, o Mário quis conversar com ele no consultório do hospital, o rosto dos dois a revelar a gravidade da ocasião, o Dr. Romeu calado à espera do veredicto, o marido a anunciar-lhe o iminente envio da participação para a Ordem dos Médicos – o assédio moral à Teresa, a intromissão do clínico no ambiente familiar da doente, a alteração do modus vivendi do núcleo de apoio e o sofrimento que poderia vir a causar entre os seus membros, a servirem de argumentação ao documento.
O clínico, em frente àquele homem a sentir-se atingido no orgulho, diz por fim:
“O Sr. Boaventura quer fazer alguma sugestão sobre o tratamento hospitalar da sua mulher?”.
“O doutor vai falar com o melhor médico do IPO de Coimbra, ele vai passar a seguir a Teresa e eu nunca mais o quero ver perto de um familiar meu” – o rosto do Mário a mostrar a firmeza com que desde muito novo aprendeu a provocar respeito nos outros.
Poucas semanas depois, o pedido de destacamento do Dr. Romeu para um dos hospitais de Lisboa veio deferido e o Professor Avelino Chora fez uma cirurgia difícil à Teresa.
A convalescença decorreu em casa acompanhada pela família. Quando se achou restabelecida, suficientemente forte para o que havia de vir, a Teresa pegou nos filhos e rumou à capital portuguesa para ali viver.
Com o patrocínio do sogro, já depois da debandada da mulher, o marido abriu um escritório de contabilidade em Viseu que viria a proporcionar-lhe desafogo financeiro. Ao mesmo tempo, matriculou-se em Psicologia – uma área de estudos que sempre o fascinou – na Universidade Católica daquela cidade. Ali conheceu a sua professora de inteligência emocional, com quem viria a casar.
Continuam todos eles à espera do amor.