sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Tempo de Natal


"O grande caminho", pintura de Fridensreich Hundertwasser, 1955.

Quase sem darmos por isso, o tempo que é ausência de novidade, fez-se tempo de Natal. A vontade de sermos outra vez interpela-nos de um modo intenso.
Com o advento do Natal parece que sentimos, cada um de nós e todos, necessidade de nos voltarmos a pensar, de nos questionarmos acerca das escolhas de vida que fizemos ou que nos fizeram crer termos feito.
É um pouco como se nascêssemos uma vez mais. Aliás, o Natal é isso mesmo. É a festa do nosso nascimento. De Jesus Cristo, filósofo, de Deus e de cada um de nós. Sejamos homens de fé ou não.
Por isso é que o Natal - festa da universalidade, por excelência - transforma-se, ano após ano, em contradição não resolvida, ao significar a celebração da nossa singularidade partilhada e, simultaneamente, a da pertença a uma colectividade que nos distingue. E a verdade é que nós somos ambas as coisas. Irrepetíveis de não haver igual, para o bem e para o mal, e solidários de não conseguirmos viver com o egoísmo de sermos só nós. Por isso é que precisamos do rosto do outro, que nos olha e diz o que lhe vai na alma ou a mentira que os lábios balbuciam. Pouco importa.
Porque aquilo que realmente necessitamos é de sermos com os outros, revisitados a partir da palavra e do beijo com que nos dizem gostar de nós. No teatro – verdade de todos os dias, no dealbar que começa e recomeça dos tempos que estão por acontecer.
O Natal é isto, e só isto. Como se nascêssemos outra vez. Melhores do que já fomos, porventura. Ou então, não. A felicidade não se faz assim. Faz-se de coisas simples, da sinceridade de sermos quem somos. No trabalho, na vida, no amor.
Talvez seja, esta, afinal, a mensagem principal de Natal. A da celebração do nascimento de cada um de nós e de todas as coisas, como se disséssemos uma vez mais, obrigado, e a da aceitação consciente da verdade de sermos assim hoje e eternos amanhã. De mãos dadas com aqueles de quem mais gostamos, cirandados no carrossel – vertigem da vida de todos os dias.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Ser com os outros

























Há duas espécies de pessoas: As que querem a todo o custo serem diferentes sendo mediocramente iguais; e as que querem a todo o custo serem iguais sendo irremediavelmente diferentes.

Nem todos se dão conta desta verdade. Tornam-se por via dissso ridículos de tanto folclore imposto aos outros. Vestem-se, mascaram-se de personagens que não são suas. Atrevem-se na postura desabrida que lhes rende protagonismo imerecido.

Os outros aninham-se de tanta cobardia imbecil uma e outra vez. Fogem de si mesmos e dos outros. Disfarçam a inércia dos actos por cumprir com a modéstia que não sentem, vaidosos de se saberem diferentes. Próximos, muito próximos, da tristeza de sofrerem por não serem só.

Não conseguem afinal de maneira parecida com a dos outros que desdenham atingir a felicidade que também é sinal de inteligência.

Desperdiçando o momento que raras vezes a intimidade se lhes oferece de serem mais fáceis de tão difíceis que nunca mais querem ser.


(Ilustração do texto de F S B B: "Retrato do escritor Walter Mehring", pintado por Groz, 1925)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Escrever




1. Escrever é fácil. Escrever bem é muito difícil. Quase todos o sabem e poucos têm consciência disso. A maioria de nós não possui a faculdade de ser capaz de escolher as palavras que devem seguir-se a outras palavras, numa sequência lógica e estética capaz de descrever o que já foi dito e o que está por dizer.
Escrever bem, preencher no vazio da folha de papel, o espaço imenso das nossas dúvidas, dos nossos anseios, das nossas certezas e dos nossos enigmas que são sinal de inteligência, é tarefa maior que se coloca a todo aquele que faz da escrita arte.
Com a palavra, ao mesmo tempo poderosa e bela porque manipuladora e íntima, a compreensão da nossa mesmidade cresce em termos de horizonte de sentido. Torna-se mais consciente, adquire uma multiplicidade de significações possíveis.
Nisso reside, afinal, o fascínio da palavra escrita. Nela somos e não somos, desvelamos e ocultamos a verdade de nós mesmos.
Mas como fazer então para escrever de um modo cada vez mais conseguido, tanto em termos formais, como em termos estéticos? A verdade é que não há cursos universitários para escritores. Não se aprende, não se ensina a ser escritor. O engenheiro, o médico, o professor, percorre um curriculum de matérias que lhe proporciona as condições necessárias para ser competente naquelas funções; o escritor não. O escritor nasce escritor.
Chama-se-Ihe um dom, uma propensão genética, uma providência de origem além terrena, o que se quiser. Mas, na realidade, aqueles que escrevem arte são seres diferentes. Com todos os custos que essa sina acarreta. Repare-se no olhar prenhe de mistério e de inteligência, na expressividade única dos gestos que dizem sem nada dizer, na atitude complacente e simultaneamente altiva, que ostentam.
Evidentemente que esta forma diferente de ser não se fabrica, não é artificial, tal como alguns gostariam que fosse. Por isso os cultores da escrita, que é competente e bela, sofrem e fazem sofrer, talvez por causa da solidão que lhes é constitutiva da sua essência de ser.





Carlos Drummond de Andrade


2. O escritor é escritor desde sempre. Por exemplo, desde a escola primária. Carlos Drummond de Andrade contou uma vez que nasceu para a escrita numa aula da 3" classe, onde D. Emerenciana Barbosa, a sua professora, descrevia numa tarde quente de Julho cidades e países distantes no espaço e na imaginação. Foi nesse momento que aquele futuro grande escritor da língua portuguesa resolveu pegar num papel e num lápis e galgar os horizontes reféns das paredes daquela sala, num exercício desenfreado de sonho e de aventura por entre palavras e frases de competência primeira, e escrever uma epopeia de viagem em dez curtas linhas.
A professora surpreendeu-o com o rosto reclinado sobre o papel, distraído, com as mãos frenéticas de imaginação empunhando o lápis cúmplice, e resolveu ler o que o aluno havia escrito.
Perante a estupefacção dos colegas, D. Emerenciana disse, alto e bom som: "Você ainda vai ser um grande escritor". Fazer do exercício da escrita uma arte é, com efeito, transformar a solidão pessoal em vontade irreprimível de partilhar com os outros a capacidade visionária de perceber o mundo de forma diferente. É ver o mundo com outros olhos; é ter a capacidade de vislumbrar o insólito, o traço distintivo, por entre a vulgaridade de todos os dias.
Digo-o uma vez mais. A maestria da escrita não está ao alcance de todos. É necessário vocação, sensibilidade estética, imaginação, inteligência, destemor no enfrentar do conformismo estéril dos homens.
Os grandes escritores possuem todas estas competências. É necessário que o saibamos reconhecer, tal como um dia fez Raymond Queneau perante uma Marguerite Duras, ainda em fase de iniciação literária: "Não faça mais nada, escreva".
É através da palavra que os indivíduos entrecruzam informações, normas de comportamento moral e social, objectivos de realização futura, mas não só, também estados de alma, formas de sentir e de desejar.

3. Na palavra descobre-se, com efeito, o homem, a sociedade, o mundo que somos e que expressamos de forma descritiva, imperativa, conformista, moralista, poética.
Não é por acaso que os filósofos do século XX foram filósofos da linguagem - "a palavra é a casa do ser", dizia Heidegger. Sem que, contudo, possamos afirmar com absoluta probidade, que a maioria daqueles pensadores, de valia intelectual indiscutível, escrevia bem, pelo menos sob o ponto de vista literário.
É que existe uma grande diferença entre o cientista da palavra e aquele que faz da palavra arte. Pode ser-se extraordinariamente competente no plano científico, na análise sintáctica - formal de um texto, por exemplo, e não se atingir a singularidade no exercício estético da escrita.
O poeta sabe disto de um modo privilegiado. Num poema a palavra que se escreve é aquela e só pode ser aquela! Nenhuma outra a poderia substituir com a mesma riqueza semântica e acerto rítmico. A qualidade de um texto literário não reside na erudição ostensiva daquilo que se escreve, mas antes na capacidade sensitiva e estética de escolher aquilo que se escreve.
Para além da predisposição vocacional, que é marca essencial da personalidade do escritor, conforme vimos já, há um outro factor que contribui para a melhoria da competência discursiva, traduzida em letra de forma. Esse factor é a prática persistente do acto da escrita.
Dizem os entendidos que para se redigir cada vez melhor, a somar à leitura de bons livros, só há uma outra possibilidade: escrever, escrever, deitar fora aquilo que se escreve, e escrever outra vez.




4. Infelizmente, hoje escreve-se cada vez menos. A Escola poderia, aqui, desempenhar um papel privilegiado. Mas raramente o faz; nem sempre por culpa própria. A extensão desmesurada dos programas curriculares, o número excessivo de disciplinas e a obrigatoriedade de se atingir níveis altos de aproveitamento em exames onde a competência científica é tida em consideração quase exclusiva, conduz a este diagnóstico de verdade, de contornos poucos animadores.
É por isso que os jornais, sejam eles escolares, regionais ou de expansão nacional, têm uma importância considerável na promoção de hábitos de leitura e de escrita junto das comunidades onde se inserem. As suas páginas podem ser espaços de exercício literário por parte dos mais jovens e de todos aqueles que gostam de escrever. Cumprindo, assim, a sua vocação de ser. A de constituirem espaços de experimentação e de reprodução da vida que pulula e se reescreve lá fora.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Deus e a Mulher


Não acredito em Deus. Talvez porque nunca o tenha visto. "Mas não O precisa ver. Confirme-O nas obras que nos deixou", dizem os meus amigos da Igreja. Alguns bem ilustres, por sinal. "Que não, foram os homens que fizeram Roma e não Deus", argumento eu. 

 

Hoje a dúvida assaltou-me quando vi aquela mulher de mão dada com o mar. Na praia que não é obra dos homens. 

Com a alegria no rosto só explicável pela pertença divina. 

 

E Deus fez-se mulher. Pensei eu.

domingo, 11 de novembro de 2007

O Carrossel


O sonho por vezes prega-nos partidas. Convida-nos a embarcar na viagem do carrossel-vertigem que não leva a lado algum. E o homem do altifalante que nunca mais anuncia a última viagem... E os outros lá em baixo, olhos postos na noite e em nós, a desesperarem de tanto esperar.

sábado, 10 de novembro de 2007

Aquela Rapariga


Aquela rapariga matou o amor de todos os homens que gostam do amor. Porque é bonita e é má. Porque não poderia acontecer outra coisa sendo bonita e má tal como é. Até ao dia em que encontrar aquele - o tal - que for mais safado e belo que ela.

 

Aquela rapariga cumprirá então a sina de sofrer pelo amor negado. Esperando idiota o tempo de recuperar a serenidade de ser bonita e má -- naqueles e só naqueles momentos em que vale a pena ser bonita e má.

 

Quando a altura chegar, aí, finalmente, cumprirá o amor em que o amor se merece de tanto prazer para dar.

 

Aquela rapariga ainda vai ser feliz.