sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Desde DOSTOEVSKY (até aos dias de hoje...!!) — A insatisfação levada ao extremo


Ainda sou do tempo em que vinha alguém da tipografia entregar as provas para o meu pai rever. Um martírio para aqueles homens que juntavam as letras, uma a uma, da mesma forma que Gutenberg ensinou. 
Imagine-se o que eles enfrentavam quando os textos eram de jornalistas ou escritores conhecidos pela inesgotável necessidade de correcção. E eram muitos assim. 
Quem escreve sabe bem do que falo. A frase pode sempre ser melhorada. Aquela palavra não é bem a que se pretendia. 
Eça de Queirós escrevia e riscava numa ânsia de perfeição que nunca tinha fim. O Camilo, coitado, não podia dar-se a esses luxos, mas Aquilino, Pessoa, Saramago, Cardoso Pires eram alguns daqueles que punham a cabeça em água dos tipógrafos. 
Talvez porque a personalidade do artista é normalmente frágil, insegura, dependente até ao extremo da opinião dos outros. Sem que alguma vez a vaidade lhes permita admitir tal condição.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Liceu de Viana


A minha escola. Liceu Nacional de Viana do Castelo. Com as obras que a Parque Escolar lhe fez tornou-se irreconhecível. Nunca vi um projecto de arquitectura fazer tão mal a um edifício. Mesmo que a um preço exorbitante. 
Não gostei dos anos que ali passei. Detestava o liceu, os professores e as matérias. Em abono da verdade, a escola devolvia-me num grau maior a animosidade. Não nos percebemos. Num tempo em que o aluno ou se conformava às exigências do sistema ou simplesmente podia contar com a única resposta praticada a eito: o desprezo. 
Sobrava no meio daquilo tudo os intervalos e as miúdas deitadas na relva e as motas com que elas arrancavam mal as aulas acabavam.  
Só mais tarde, já nos estudos superiores, percebi uma parte ínfima daqueles tempos perdidos. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Guerra e paz

Ó Putin! Não sabes nada de nada. A guerra não conta quando comparada com a alegria de uma criança a correr para o mar. Nenhuma coluna de tanques tem mais força que a vontade de felicidade demonstrada nos mais pequenos gestos do ser humano.  

Esquece a guerra e junta-te aos homens e mulheres de todos os tempos e lugares. Pode ser que ainda vás a tempo de ouvir por uma vez o som feito de silêncio do grande oceano. 

Nesse murmúrio perceberás o que palavra alguma pode ambicionar transmitir. Mesmo que seja a tua. 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A festa


Já não era sem tempo. É hoje a festa. Aquela por que anseio há tanto tempo. Sem regras, sem figurantes desejados, sem dress cod imposto. O único objectivo é não vir a ter objectivo algum. 

Os porteiros vão fazer asneiras para outro sítio. Todos podem entrar na festa de hoje à noite. Os homens sozinhos ou acompanhados. Mesmo que sejam néscios, liberais ou benfiquistas. Novos ou velhos. Doutores ou sábios. Na diversidade reside o sucesso do evento. 

No caso das mulheres, já as coisas não funcionarão exactamente assim. Só podem frequentar a festa as bonitas, ou as inteligentes, ou as do norte ao lado do mar, ou as cultas, ou as seguras de si, ou as inseguras prestes a tornarem-se seguras. Alegres ou a secarem as lágrimas com as costas da mão.  

Porquê a diferença no critério de admissão dos homens e das mulheres? 

É fácil chegar à resposta: só as mulheres são identificáveis pelas matizes que lhes dão a graça e que os homens nunca atingirão. Os bárbaros são sempre muito iguais.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Sol, a Lua e Eu


Lá ao longe estás tu: o sol majestoso de calor e luz sobre o mar aquietado. Tão intenso que parece estar a iniciar a jornada. E, no entanto, o dia a aproximar-se do ocaso. 

A seguir há-de tomar o lugar do sol a lua branca. A minha primeira tentativa de poema, em plena aula da primária, enquanto o professor falava da matéria, teria eu sete ou oito anos, tinha a lua como tema. 

Numa altura em que ela ainda não me tinha feito mal, isso só aconteceria mais tarde. 

Já adulto tardio percebi finalmente o poder do sol, das manhãs luminosas, em mim e em tudo o resto. Hoje sei a falta que me faz, do sangue novo que me invade o corpo transportando a sua energia. 

Há algum tempo já que não chove. Os dias têm sido governados pelo sol límpido de inverno.  

Dizem as línguas malévolas que pululam em mim que estas tardes de esplanada se ficam a dever à gabardina beje que comprei há algum tempo. A verdade é que desde aí nunca mais choveu. 

Quando o sol me faltar outra vez vou procurar a Mariana da praia de São Rafael. Pode ser que na companhia dela aconteça o mesmo que com a gabardine.

Se tal não for possível, pelo menos que me ajude a reencontrar a luz branca da manhã e a noite clara que um dia foram nossas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Catarina Salgueiro Maia


A filha do capitão de Abril Salgueiro Maia emigrou para o Luxemburgo em 2011, num tempo em que Portugal era governado por Passos Coelho. Precisava de trabalho e em terras lusas não o encontrava. 

A Catarina Mau-Feitio — assim se auto-reconhece — soube desde sempre ser filha de um herói mas nunca foi beneficiada por isso. Aliás, o próprio pai também não viu reconhecido pelo estado essa condição — o triste episódio protagonizado por Cavaco Silva ao recusar-lhe a pensão ao mesmo tempo que a aprovou a dois inspectores da PIDE, é eloquente a esse propósito.  

A Catarina tem trabalhado nos últimos onze anos nas limpezas de cafés, restaurantes e, ultimamente, num lar de idosos — com todos os condicionalismos que a pandemia trouxe a estas profissionais.  

Exploradas, invisíveis para a sociedade, quem haveria de defender as “femmes de ménage” perante as entidades patronais? A nossa Catarina, claro. As televisões do Luxemburgo interessaram-se pela mulher de cabelos vermelhos, arauta inquebrantável de duas mil mulheres mal tratadas pelos diversos poderes. 

Da mesma têmpora que o pai. Indiferente a estatutos, prebendas, encómios 
supérfluos. A Catarina nunca ligou a nada disso. O que os outros pensam dela tem um interesse fugaz. 

Casou há dois meses com um trabalhador da construção civil também radicado no Luxemburgo, tal como ela com uma vida difícil para aquietar. 

Tenho muita admiração pela Catarina. Num país de que alguns acham ser donos, ela é um caso raro. 

Tem o sangue do pai, não há dúvida. Portugal precisa de mais gente desta têmpora. 

Razão tinha Sophia de Mello Breyner quando escreveu sobre Salgueiro Maia: «Aquele que na hora da vitória respeitou o vencido/Aquele que deu tudo e não pediu a paga/ Aquele que na hora da ganância perdeu o apetite/Aquele que amou os outros e por isso não colaborou com sua ignorância ou vício».