domingo, 26 de setembro de 2021

Solidão urbana


Hoje saí de casa para votar. As mais das vezes estou na sala fria da casa com a manta a cobrir as pernas e a televisão a quebrar o silêncio. Na carpete o gato Atum partilha a minha solidão.

Ultimamente não me sinto feliz. Não tenho a quem dizer o que seja, a minha mulher morreu o ano passado, a filha mora com a família na outra banda do rio. Os camaradas da bisca foram um a um desaparecendo. Restam poucos, todos eles tristes e ensimesmados como eu.

O mundo em que eu vivo já não é meu, sinto-o muitas vezes. Não sei quem são as pessoas de quem a televisão fala, os cantores do meu tempo foram substituídos por figuras grotescas vestidas de forma estranha. O próprio Benfica já não é tão glorioso como antes. 

Estou a pensar mudar de poiso nas horas livres. Em vez de ir para o para o Santa Maria vou começar a frequentar o Champalimaud Clinical Centre. Ainda vou arranjar alguém que queira fazer-me companhia. A mim e ao Atum.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

As séries da RTP2


A enorme qualidade das séries da RTP2, emitidas todos os dias às 22 horas, é o segredo mais bem guardado em Portugal.  
Procurar em canais de streaming produtos televisivos que o melhor canal nacional proporciona com igual valor é sinal de provincianismo.

domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Sampaio, o cidadão-presidente


A memória da multidão é breve e injusta. Na semana passada, os comentários dos leitores dos jornais e dos frequentadores das redes sociais – secundados por alguns textos de jornalistas – falavam com enfado da previsível morte de Jorge Sampaio. A exoneração da administração Santana Lopes era a razão aduzida por todos, esquecendo-se esta turbe que aquele governo caiu por si mesmo, tantas as trapalhadas em que se envolveu.

Nos últimos três dias, surpreendentemente, os portugueses redescobriram o Presidente Sampaio. Nem uma só crítica se ouviu nas televisões, só elogios ao “homem bom”, ao cidadão impoluto, ao homem de causas. A pouco e pouco, foram-se mesmo descobrindo situações desconhecidas do grande público, vividas num tempo político especialmente difícil.

Os desaparecidos detractores de Jorge Sampaio enganaram-se acerca deste homem. Ele foi o mais próximo do ideal republicano de todos os presidentes eleitos depois do 25 de Abril. Discreto, institucionalista, avesso aos rankings de popularidade, diplomata de excepção, cidadão-presidente igual nos direitos a qualquer outro português.

Tive oportunidade de o conhecer pessoalmente. Recordo com saudade um jantar num dos mais bonitos hotéis do país, o de Santa Luzia.

Só mais duas coisas muito breves. A primeira, refere-se ao comportamento da mulher e dos dois filhos, o André e a Vera, nas cerimónias fúnebres, exemplar a todos os títulos. 

Por último, Portugal, país de nove séculos, poderá ter, um dia destes, de recuperar o debate, por mais paradoxal que possa parecer, entre as vantagens do republicanismo e da monarquia numa União Europeia progressivamente federalista.

sábado, 11 de setembro de 2021

Vinte anos depois


Vinte anos se passaram já. A realidade a ultrapassar a mais extravagante imaginação hollywoodesca. A forma de viver que era a nossa a ser atacada em directo nas televisões de todo mundo.

Nesse início de tarde, lembro-me de estar a acompanhar a emissão da RTP conduzida pela pivô do Jornal da Tarde, a jovem jornalista Andrea Neves. E que bem que ela esteve. Enquanto os outros canais ainda falavam em acidente, naquele canal já se pensava num acto terrorista. Como as coisas, de então para cá, se alteraram também no modo de fazer televisão!

A sensação que mais guardo daquele dia, para além do espanto provocado pelas imagens, tinha a ver com a expectativa do que se poderia passar no momento seguinte. Hoje sabemos a cronologia dos acontecimentos e o raio de alcance dos alvos a atingir. Mas naquela tarde não. Dois mil milhões de telespectadores pensavam em todas as hipóteses possíveis de dimensão bélica. Pois se o centro do mundo político e financeiro estava a ser atacado daquela forma, tudo o resto parecia ser possível.

Desde aquele dia muitas coisas mudaram. De um país detentor maior do poder político passou-se para a disseminação global de zonas de capacidade militar e força económica mutáveis. O mundo tornou-se multipolarizado na possibilidade de novas alianças de interesse estratégico. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos e a Europa não souberam responder aos novos desafios colocados pela globalização.

Agora resta-nos esperar que ainda estejamos a tempo de salvaguardar a cultura e os valores ocidentais face à nova super-potência – a China, claro – e a todas aquelas regiões de domínio emergente. Mas para isso a América terá de actuar em conjunto com a Europa, contando ainda com a união de interesses com países como a Índia, o Japão, o Brasil e continentes como o africano e o australiano. 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Sobre mim


Escrevo tanto sobre os outros e nada sobre mim — o costume entre aqueles que fazem da vida posto de observação da comédia e do drama exterior a eles mesmo. Eu sou o “homem que olha”. Não por inveja ou por despeito. Apenas porque gosto das pessoas. Penso mesmo que elas são a única realidade que verdadeiramente me interessa. E as mulheres de uma forma muito especial. Claro, dizem os leitores que me vão conhecendo. Mas a razão de tal acontecer não é descortinável no divã do psicanalista. Gosto das mulheres de uma forma normal, ausente de qualquer factor patológico. Há quem tenha verdadeira adoração pela pintura, pela música, pela arquitectura ou pela natureza. Eu sinto um profundo fascínio pela feminilidade, no que ela tem de belo, de resistência anímica e de via de acesso a um mundo absolutamente outro. Numa palavra, a mulher é para além de tudo o mais, o colo. 
Mas as minhas paixões também se corporizam noutras áreas da vida: gosto de ler, de escrever e, principalmente, de fazer jornais, sejam eles impressos ou digitais. 
Quanto à forma de ser, sou tímido mas fui toda a vida relações públicas das festas oferecidas pelos meus amigos, sou cínico para aqueles de quem não gosto e ingénuo na abnegação com que trato alguns que mais tarde venho a saber não merecerem, caracterizo-me mais pela imaginação do que pelo fazer e, no entanto, fui desde sempre eleito presidente ou delegado de tudo o que se possa pensar sem nunca ter deixado de ser porteiro dessas organizações.  
Em resumo, sou a maioria das vezes bom tipo. Pelo menos até à altura em que a tristeza toma conta de mim perante a ausência de sentido daquilo que olho.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

De volta à cidade


Chegou Setembro e com ele a volta da rotina dos dias de trabalho. Logo de manhãzinha as portas automáticas do escritório num corrupio para deixarem entrar as pessoas. Muitas vezes atarefadas com coisa nenhuma mas a envergarem o rosto sério de quem está preocupado com os assuntos a tratar. 
Ao meio dia e meia hora do almoço. A comida feita em casa engolida num ápice. De seguida, o banco do jardim a servir para os trabalhadores descansarem as pernas antes de voltarem ao expediente da tarde. 
Entretanto a conversa a fluir indolente. 
— Olhe que comigo o vestido chegou rápido. Foi encomendar num dia e no seguinte estava cá. 
— Pois eu não tenho sorte nenhuma com as compras na internet. Ainda na semana passada a minha filha comprou uma camisola para oferecer ao namorado que fazia anos e… nada, o rapaz ficou sem prenda. 
— Vocês têm a mania que são modernas e depois dá nisto — diz a D. Aida — comprem num hipermercado que é mais rápido e mais barato. Ou então façam como o Sr. Antunes e mandem vir tudo pela Redoute. 
O Sr. Antunes não respondeu. Também já eram horas de voltar ao trabalho e, por isso, levantaram-se e começaram a caminhar. 
O que eles não sabiam é que a tarde ia ser ocupada com uma inspecção surpresa feita pelos senhores doutores vindos de Lisboa.

domingo, 5 de setembro de 2021

Arte urbana em cidade do interior

Nenhum ser humano é um só. Somos o conjunto de diversos momentos e diferentes formas de estar. O que revelamos agora é o contrário do que parecemos ser horas atrás. À noite estamos disponíveis na vontade de agradar, à tarde mostramo-nos carrancudos por fazermos aquilo que detestamos. Por isso é que os artistas que nos querem representar numa escultura ou numa pintura têm dificuldade em traduzir essa variabilidade. Até porque há aqueles cujo pensamento tende para o predomínio lógico ao mesmo tempo que outros são mais próximos da capacidade hermenêutica. Uns a serem assim a vida toda e os restantes apenas no dia a seguir. 
Isto mesmo procuraram reproduzir neste esboço de escultura os artistas Mário Ortega e Miguel Moreira da Silva, sem apoios financeiros de natureza alguma, num trabalho de grande coragem e também de desafio a todos os que ditam as normas de gosto da chamada arte urbana.

sábado, 4 de setembro de 2021

Paulo Rangel


Este é um tema tolerado numa conversa de café mas não num texto escrito. E, no
entanto, é aceite com alguma indiferença na sociedade actual - desde que não entre portas de casa adentro. 
Vem isto a propósito de Paulo Rangel ter assumido esta tarde, num programa de televisão, a sua homossexualidade. Confesso ter ficado surpreendido. Não sabia. Gabo-lhe a coragem de enfrentar velhos fantasmas que ainda povoam a sociedade portuguesa. Pouco tempo depois de ter sido divulgado um vídeo em que Rangel aparece embriagado numa rua de Bruxelas. Protagonizando, deste modo, uma campanha ad hominem em relação à sua identidade de professor universitário, advogado, homem culto. 
Mas o reconhecimento do seu valor enquanto figura cimeira da vida social que por cá vai acontecendo, não retira interesse à questão que há muito gostaria de ver respondida: o número relevante de homens e mulheres homossexuais em Portugal deve-se à libertação ideológica e moral possibilitada pelo 25 de Abril, ou eles sempre existiram em igual escala? De outro modo: é o mimetismo com que vulgarmente somos confrontados — principalmente em meios elitistas como o das televisões, dos fóruns culturais ou das universidades — que dita a leveza dos comportamentos de carácter intímo ou, em alternativa, as pessoas nascem com sua biologia potenciada de tal modo que os percursos opcionais são mais restritos do que pensamos? 
Não sei de forma peremptória responder a isto. Da mesma forma que não sei o que dizer aos que me vão criticar (e muito) por ter a veleidade de fazer perguntas deste tipo.