sábado, 25 de novembro de 2017

Dia de mim mesmo


O leitor de certeza já reparou que todos os dias são dias internacionais de alguma coisa. Alguns têm directamente a ver conosco, outros nem num longínquo vislumbre. Ora eu gosto mais das festas que não são minhas do que as que têm a minha cara. Posso penetrar!? -- essas sim, gosto, sem pulseira VIP no pulso. 
Vem isto a propósito de hoje comemorar-se o Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Tudo a ver comigo. Claro está: vou penetrar.  
O mesmo se passa no Dia Mundial do Não-Fumador, já fumei quatro maços diários -- hoje não fumo mas continuo a considerar o cigarro a melhor coisa que pode acontecer na vida das pessoas, desde que não constitua um passaporte para a doença --, ou o Dia Mundial da Poupança, logo eu que sou homem de excessos, quando gosto gasto tudo aquilo que tenho, seja através da emoção ou através do dinheiro. 
Como se não bastasse esta minha vontade de ser do contra, acrescente-se o facto de não concordar com a designação do dia de hoje. Então e o homem enquanto vítima? As mulheres não fazem ideia de quão difícil é ser homem nos dias de hoje. Eu próprio posso servir de exemplo: já fui ameaçado por mulheres com um revólver encostado ao meu salve seja córtex pré-frontal, perseguido semanas a fio por um automóvel que esperava horas que eu saísse de casa, ameaçado de um modo verosímil com o envenenamento que ia acontecer a qualquer momento. Não és meu, não hás-de ser de nenhuma outra. A conversa de sempre. 
No resto, não tenho qualquer contacto com a realidade da violência doméstica. Por isso é que o dia de hoje também é meu. Nunca na minha casa de infância e juventude as dificuldades foram resolvidas com violência. O pai e a mãe amavam-se tanto naquele tempo como hoje. Eu e o meu único irmão éramos um só. 
Uma vez ou outra o Dr. Quintino poderia, no entanto, descobrir algum sinal muito remoto de violência familiar, no que à relação entre os irmãos diz respeito. Principalmente quando a mãe me dizia: "Sérgio, vai buscar...", ao que eu respondia prontamente "Ouviste, Rogério?".
Dezasseis meses de vida nos separam. O amor nos juntou para sempre. Os trintas que hoje temos mais os setenta que hão-de vir.
E para o leitor que ainda resiste à leitura deste texto (transformado em desabafo), mostro a fotografia de família em jeito de atestado de tudo aquilo que disse.
Na fila de trás, ao centro e à direita, os meus pais. À esquerda, um primo, Adalberto Rolo Igreja, cidadão honorário do Rio de Janeiro, falecido este ano.
Em primeiro plano, à esquerda, o filósofo Rogério; à direita, o sábio Sérgio. 
Um pormenor que a mim dá umas saudades imensas: nas mãos do sábio, a revista Tintin, adquirida religiosamente todas as semanas, com um preço de capa não comparável com as publicações periódicas actuais. Era muito cara para um país como o nosso.  
E pronto: a nostalgia tomou conta de mim. Acontece muito com as pessoas sensíveis. Já não quero saber do dia da violência das mulheres. Acho que vou instituir o meu dia. A partir da uma da madrugada vou festejá-lo. Adoro a noite. Não há dia como a noite. Mais logo estarei no Urban Beach, eu só e o Paulo Dâmaso de Andrade, dono da discoteca, com quem gosto de conversar, ou então, num registo bem diferente, com a minha amiga Monica Bellucci. Não sei ainda com quem, na hora decido. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Galope sem freio


Nem os cavalos do carrossel perpétuo querem o percurso de sentido único. Nova volta nova viagem. O tanas, ninguém a repete anos a fio de livre vontade. O funcionário de manga de alpaca fechado num cubículo sem luz, o dia todo a carimbar papéis, conhece bem este arremedo de vida.

Tal como os cavalos do carrossel eu não aceito a prisão de ser apenas uma escolha. Quero ser várias. Hoje mestre de cerimónias, amanhã só eu e o mar. Operoso e amante das esplanadas de nada fazer. De esquerda no Restelo e de direita no Barreiro. 
Os actores, as personalidades públicas, os escritores estão autorizados a serem diversos num só. Eu também quero. Eu e o Pessoa redivivo.  
É por isso que a mentira para mim não é somente mentira. É outra possibilidade de ser. Se calhar melhor.
Perceberam agora amigos que nunca me entenderam antes?
Eu quero fugir do carrossel sem destino e andar e errar e acertar no caminho. E ter histórias para guardar. As 722 mil que vivi não me chegam.  
Ouviste... deus dos outros?

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Adriana


Lembro-me muito bem de ti. Há anos que não te vejo. Vinhas a minha casa, o mordomo anunciava a tua chegada e íamos logo para o quarto. Despias-te devagar e eu encostado à parede do nirvana olhava-te. As meias, sempre as meias, eras esperta, enrolava-las ao mesmo tempo que desciam as Torres Gémeas. Era nessa altura que eu entrava em casa de nós os dois, bem junto a ti, mãos nas mãos. Uma eternidade depois fechavas os olhos e eu abria os meus para ver os teus fechados. Beijava-te, então. 

Nunca falamos nada de substancial. Sabia o teu nome, Adriana, a tua morada perto da minha e pouco mais. Existíamos juntos para assomarmos à casa imaginada onde éramos felizes. 
Apenas uma vez levei-te a jantar fora, à Capela dos Ossos, em Évora. E tudo porque naquele dia fizeste aquilo de que eu mais gostava: penteaste o cabelo frente a mim, esticaste-o até estar pronto o carrapito, o adereço com que o prendias na boca e eu a voar no céu, qual criança a tomar banho nas águas da praia. 
Agora sei - gostava de atravessar o túnel do Marão outra vez contigo. 
Agora sei.