sábado, 31 de dezembro de 2022

Aquele almoço


A fotografia parece ter vindo ter comigo. Os netos (falta uma neta que na altura estava a estudar no estrangeiro) com os avós, pouco tempo antes de o meu pai ser operado. Era uma espécie de almoço de despedida – eu sentia isso e a realidade veio confirmar o presságio.

Só hoje à tarde ganhei coragem e resolvi olhar para trás, para o ano que hoje acaba, o malfadado 2022. O ano em que o patriarca da família morreu, em que tudo parece ter ficado pedaço de um todo que não existe mais.

É esse vazio que caracteriza o tempo em que vivo atualmente. Não tenho a quem pedir confirmação do que aconteceu no passado e que faz parte da minha história e da dos outros. É como se a rede do trapezista tivesse sido retirada. 

Fui largado só e triste. E o tempo não me tem feito recuar no pavor da ausência. Às vezes parece que sim, mas logo vem a memória requerer nova contextualização dos limites interpretativos da circunstância. 

Ninguém tem culpa de me sentir assim. Sou eu que me vejo usurpado de uma parte grande da minha identidade. Continuo a ser eu, mas sem o relógio e sem o cigarro entre os dedos – uma mera cópia adulterada de mim mesmo pela ausência do assentimento dos que me antecederam.

Dentro de poucas horas entraremos em 2023. Vamos esperar que o novo ano signifique mesmo um novo tempo, de felicidade sem termo de prazo. Para todos.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Natal em Viena


Tarde em Viena, chuvosa, de inverno. Procurei algum aconchego numa das muitas feiras de Natal espalhadas pela cidade. Nada. Todas elas vazias de gente, dos deliciosos bolos e chocolates que lhes dão fama e do vinho quente que renova a alma do mais empedernido dos homens.
Daquela ausência divina fugi à procura do Natal que não tive.

Resolvi procurá-lo na mansão da minha amiga advogada Dra. Luciane. Estava muito confortável a ilustre causídica brasileira.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Ai estes malditos Domingos


“Aborreço-me de morte nos domingos de inverno. As horas passam por mim num ritmo exasperadamente lento. É como se fossem sempre a mesma. Dez da manhã ou quatro da tarde, tanto faz. Lá fora o cinzento da atmosfera tem na claridade da luz do candelabro o contraste possível. Dentro de mim a ansiedade do que não vai suceder, das pessoas que gostaria que estivessem agora aqui. Como se eu soubesse quem são – só conheço as que não me apetecem. O dificilmente alcançável é o que mais vontade nos dá.
Ai estes malditos Domingos. Ler, corrigir os trabalhos dos alunos, ouvir o podcast da moda, não me apetece nada disso. Só quero viver algo diferente do habitual. Ou então conhecer alguém oposto a mim. Mas onde poderá estar esse vulto constante na imaginação e nunca visível perto de nós? Vou esperar pela segunda-feira a ver se o encontro. Um dia há-de ser.”

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Rapariga só


Tanto tempo a adiar e afinal não foi difícil. Despediu-se do Alberto como se estivesse a dar as boas-vindas a algo em vez de dizer adeus a um parceiro de vida. Ele olhou incrédulo para ela quando a sentença costumeira surgiu: “Lamento, mas já não gosto de ti”. O marido cada vez mais pálido sem força para dizer coisa alguma. “Falaste com os teus pais?” – a pergunta de um derrotado a surgir com a inevitabilidade de sempre.
Já há algum tempo que ela tinha tomado a decisão. Ver o Alberto provoca-lhe cada vez mais cedo, no fim de mais um dia no escritório, asco: tudo nele a enfadava, o trabalho à frente de tudo, a conversa à volta do jogo do Sporting ou da política partidária ou do livro que andava a ler. O resto parece que não existia. Principalmente a vida lá fora.
Para além disso, já não a entusiasmava em nada: era feio como a maioria dos homens, o corpo nu a anos-luz da harmonia que o das mulheres transmite, a hora do sexo transformada num tormento, a voracidade traduzida em movimentos de posse animalesca e ritmo desenfreado, a conversa idiota concluída a batalha. 
No resto não era má pessoa. Interessava-se por tudo o que lhe acontecia. “Joana, não te esqueças de marcar consulta para a tua irmã, achei-a triste noutro dia...”. E insistia na certeza de que não se lembraria de o fazer. Tratava das contas da casa, contratava nova empregada logo que a actual se despedia, comprava os livros que achava que a Joana devia ler.
No dia seguinte vai estar fora daquela vida sempre igual. Combinou com uma colega do trabalho ficar por uns dias na sua casa até arranjar um sítio que lhe agradasse. Sabia que nada ia ser fácil nos primeiros tempos. Desde muito nova que a ideia de estar só a horrorizava. Tinha medo da solidão.
Quando a tal colega e o marido dela a receberam na residência que haveria ser a do exílio, sentiu-se pela primeira vez livre do vagar enfadonho em que tinha vivido. Só ao serão o casal teve coragem de dizer a verdade que tinham adiado a contragosto: “O Alberto há mais de um ano que anda com a directora de pessoal da empresa.” 
Foi nessa altura que o choro sem justificação irrompeu no rosto descido sobre as pernas, ao mesmo tempo que o sufoco vindo de dentro não a deixava falar. 
Não conseguiu dormir naquela noite nem em muitas outras noites.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Jornalista Cláudia Garcia


O melhor que podia acontecer aos amantes do esférico a rolar nos relvados de Qatar: a jornalista Cláudia Garcia a debitar os seus conhecimentos sobre futebol na televisão italiana. É já milanesa em quase tudo, até mesmo no corpo e no modo de dizer sensualidades ao falar da corrupção da FIFA. Talvez o facto de ser de V. N. Gaia, tripeira até à medula, explique muita coisa.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Cristiano Ronaldo e o campeonato do mundo do Qatar


Na vida de Cristiano Ronaldo nada fazia prever que alguma vez aquele miúdo saído da Madeira com apenas 11 anos de idade viesse a tornar-se o português mais famoso de todos os tempos. Mais conhecido do que o próprio país: na Chéquia ou no Camboja; na Côte d’Azur ou em Times Square; no deserto do Saara ou nas estepes da Sibéria. 
Como em tudo na existência humana, é chegado também para ele o tempo do ocaso da sua genialidade — o corpo teimoso insiste em traí-lo, os homens fracos querem agora vingar-se do que nunca tiveram e desde sempre invejaram nele. 
Há no entanto, algo que o Cristiano Ronaldo ainda tem em doses sobre-humanos: a força de vontade capaz de provocar nele o último assomo de superioridade extra-terrestre. O campeonato do mundo da Qatar é, de facto, o palco da derradeira luta de Cristiano consigo mesmo e com as almas-daninhas. 
Não, não, desta vez não se trata de uma competição da equipa de Portugal. O nosso país terá muitas outras oportunidades de se revelar enquanto campeão. Aquilo em que vamos participar a partir de hoje é na homenagem a uma criança-homem que durante vinte anos representou algumas das coisas que os portugueses têm de melhor.  
O resto não interessa nada.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Notting Hill


Unidos na descrença eu e o Hugh Grant. Cansados da lufa-lufa do dia, da chuva incessante, do café vazio, do imperdoável ralhete do presidente à ministra mais simpática do governo, de mais um anunciado falhanço na cimeira do clima. Nem o bairro de Notting Hill nos salva do cansaço de tudo isto.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A pecadora inconformada


“Perdoa-me, Senhor Deus, que eu não paro de pecar. São os homens, é a noite, é a festa… e eu não sei ficar quieta a adiar aquilo que me faz realmente feliz. Talvez não seja forte o suficiente, talvez a vida a que me obrigam não seja para mim. A monotonia cansa-me, as pessoas no trabalho cansam-me, chego ao fim do dia frustrada pelo tempo que não vivi. Que me perdoe o Artur, o Américo e o pai dele, o Zé Manel, o Benjamim e o Ribeiro e todos os outros a quem prometi o que não dependia só de mim. Sim, porque eu não sou dona do meu corpo nem do meu pensamento.”

domingo, 30 de outubro de 2022

Dia de eleições nesse imenso Portugal que se chama Brasil


“Estava-se tão bem… mas o dever chama-me — as mesas de voto vão fechar e a Senhora D’Aparecida não me perdoaria se não votasse !!”

sábado, 22 de outubro de 2022

Saneamento à chinês


— Está? É da segurança? Por favor venham buscar o Dr. António Costa que ele a partir de hoje deixa de fazer parte da Comissão Nacional. “Hasta la vista, baby”.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Mulher de bom gosto


— Este Tolentino Mendonça cada vez escreve melhor. Estou a adorar "A Noite Abre Meus Olhos". É como se ele falasse comigo. Adoro.

sábado, 17 de setembro de 2022

Viagem ao espaço


É por isso que não caso. Da última vez que fui a Vénus cheguei cansado ao lar onde vivia com a Mafalda, ansioso por lhe contar as novidades daqueles dias, e ela: “Olha que bom foi teres chegado, tenho aqui este lixo para levares ao contentor”. Assim mesmo, nem um “então, correu bem a viagem?”, nem um beijo, nada. 
Na bagagem que arrumei no nosso quarto, estava a lingerie comprada em Vénus mais a respectiva camisa de dormir na expectativa de as ver à noite no corpo da Mafalda. “Ó Zé — disse ela — desta vez acertaste, vou levar este conjunto ao encontro anual da Prozis, obrigado”, e eu mudo de espanto…
Jurei que da próxima vez que fosse a Marte ia trazer-lhe mísseis ar-terra HARM para ela levar ao congresso das vendedoras da Bimby. 
“Deixa-a” — vociferou indignada a Maria José, que Deus a proteja, nua deitada em cima do meu peito, na hora costumeira do amor, no fim das nossas tardes. “Junta as coisas e anda viver aqui para casa. Este fim-de-semana vou à àcção de formação da Remax, mas segunda-feira já podes vir.” — decidiu ela. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A morte da professora


A notícia foi dada com todo o cuidado à mesa do jantar. A professora de Biologia que há algum tempo lutava com um cancro tinha morrido. O rosto da minha filha Leonor, que havia sido aluna dela, paralisou por momentos. A expressão do olhar como que emudeceu até que as lágrimas rolaram pela face. Nem um som se ouviu. 
Hoje, a professora vai a enterrar. Excelente profissional, disso sou testemunha. Ensinava como se de um prazer se tratasse a tarefa. Nascera para aquilo.
Tinha, para além disso, uma sólida formação científica adquirida na Faculdade de Ciências do Porto. 
Num tempo em que os governos se definem pelo crescente menosprezo pelos docentes, torna-se impressionante ver uma filha a chorar pela sua professora. 
E dou por mim a pensar que cada vez será mais difícil encontrar profissionais do mesmo nível da malograda professora nas nossas escolas.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Reunião atrás de reunião


“A reunião? É p’ra já. Vou só terminar de beber a Coca-Cola. Depois é molhar-me até ao carro com a chuva que não caiu durante o ano todo. As pessoas vão rir de alegria com o estado em que vou chegar. Que bom p’ra elas! É a única vez que vão rir até à noite do Réveillon. E mesmo aí, não sei. Só espero que a reunião tenha um bocadinho mais de graça que os participantes. Vamos… vamos lá, Irmã Teresa.”

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Ainda no rescaldo das festas


Não vi nada das festas. Aquilo que soube do modo como decorriam foi através da jornalista Emilly Scarlett Walker. Ela ia contando-me ao mesmo tempo que o meu pé partido permanecia quieto conforme recomendação médica.

Em Viana e longe da festa. Os deuses devem andar zangados comigo.

Do bulício daqueles dias já só restam as fotografias publicadas nas redes sociais. Nelas transparece o sentimento que nem sempre se tem revelado com a mesma intensidade: o orgulho de ser Viana. De um modo dificilmente reproduzível no resto do país. Manifestando-se no envergar colectivo dos sinais distintivos da cidade e das suas freguesias — nos trajes, nas danças, nas músicas e na disponibilidade para a festa. Talvez de modo comparável — em termos muito relativos, claro está — à galhardia dos sevilhanos na feira de Abril.

Por isso é que se torna imperioso aproveitar o êxito destes ciclos festivos para, entre outras coisas, relançar a imagem turística de Viana, tão mal gerida tem sido nos últimos tempos pelos seus responsáveis. 

Veja-se, a título de exemplo, o caso da Praça da República, a sala de visitas da cidade. Actualmente não tem um único café, uma única esplanada, estando os espaços anteriormente ocupados pelo Café-Bar, Pastelaria Caravela e Café Américo (pasme-se!) desocupados. Parece mentira, mas não é.

Resta a esperança de que a euforia proporcionada pelas Festas d’Agonia dure o ano inteiro e faça do povo vianense uma entidade crítica inadiável. 

(A fotografia é de Paulo Ramunni e expressa os valores e os costumes das gentes de Viana em tempo de romaria)

terça-feira, 23 de agosto de 2022

A propósito da edição das Festas D'Agonia


Quisemos saber a opinião da jornalista inglesa Emilly Scarlett Walker sobre as Festas d’Agonia deste ano. Em serviço de reportagem para o jornal de grande circulação “Neighborhood Tribune” ela acompanhou de perto os diversos números da romaria. Vale a pena ouvi-la. 
— A Emilly gostou das festas?
— Sim, particularmente da vontade manifesta em todas aquelas pessoas de voltarem a estar juntas e de festejar a graça de viver. É como se procurassem obter um efeito catártico de alcance colectivo. 
— Houve algo que lhe tivesse chamado a atenção pelo ineditismo da situação?
— Penso que terá sido o primeiro ano em que as festas verdadeiramente se discutiram. E tudo por causa de motivos menos nobres fomentados pelas redes sociais. As questões da identificação do “vianense de gema” e do bom ou mau gosto da utilização da palavra “chieira” são disso exemplo.  
— Gosta desta palavra ou não? 
— Num primeiro momento disseram-me que se referia ao chiar de uma roda mal oleada; doutra vez contaram-me que “chieira” apelava à memória da matança do porco nas casas rurais, quando o animal chiava na eminência da morte. Confesso que ainda agora hesito acerca do verdadeiro sentido da palavra.  
— De que números do programa das festas gostou mais?
— Do “vamos para o festival”, da “procissão ao mar” e da “festa do traje”, sem dúvida.
— E dos que gostou menos?
— Gostei de todos. Todos têm razão de ser. Podem, no entanto, em alguns casos ser melhorados. Por exemplo, na duração do cortejo — não se pode obrigar o espectador a estar duas horas à espera do espectáculo e mais três horas a assistir à sua evolução. É muito tempo. Outro sector que tem de ser repensado é o dos fogos de artifício. Numa cidade com as tradições históricas na área como é caso de Viana, é triste não assistir a um maior investimento nas exibições da indústria pirotécnica. 
Para além disto, ainda não descobri alguém que esteja à altura de F. Sampaio, M. Freitas, A. Costa, M. E. Vasconcelos, M. M. Couto Viana ou do seu irmão A. M. Couto Viana ou ainda do pai M. Couto Viana, para além, claro está, do muito grande P. Homem de Mello, na narração e explicação dos quadros etnográficos em análise. 
A Universidade Politécnica da cidade deve criar urgentemente estudos de pós-gradução em etnografia, antropologia, sociologia capazes de preparar uma nova geração de investigadores nos assuntos relacionados com a identidade de Viana, o seu folclore, os trajes, a dança, a música, por forma estruturar-se cientificamente uma etnografia renovada.  
— Quer aproveitar para mencionar algo de que não tenhamos falado nesta conversa?
— Quero, com muito gosto, tornar público o quanto gostei de contactar com o charme irrecusável, a inteligência inesquecível e a elegância de sentimentos de você, meu caro Francisco Barros e Barros.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Estão aí as Festas D'Agonia


Já se canta e dança ao som das concertinas em Viana. São as Festas D’Agonia, meus senhores. As mordomas enchem-se de vaidade trajando da cor do mar, dos campos e do sangue que lhes corre nas veias. À frente delas, o presidente de honra da romaria deste ano: Tiago Brandão Rodrigues. Um must.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

A noite a chegar


O dia aquieta-se. É tempo de recolher às profundezas do insondável e dar lugar à noite. Com ela virá o susto do menino, o rame-rame da novela de televisão, a bem-aventurança dos amantes. E, principalmente, a serenidade dos percursos mais irrequietos. Pelo menos, durante umas horas. Até tudo começar de novo.

domingo, 7 de agosto de 2022

A cultura na RTP


O português comum gosta de dizer mal, seja do que for, um pouco à maneira de compensação das suas falhas. A televisão é um dos alvos preferidos: “nunca dá nada de jeito”, é só telenovelas e Big Brother e futebol, mais os alertas da CMTV".

O paradoxo de tudo isto vem depois, quando percebemos que aqueles que reclamam são os que correm para a caixa mágica para ver nos quatro canais de informação generalista a triste notícia da demissão do roupeiro do Benfica.  

Só isso pode explicar as audiências confrangedoras de programas onde se reconhece reflexão, crítica, conhecimento sobre os grandes temas actuais.

Vem isto a propósito do programa Grande Entrevista emitido ontem pela RTP. Durante cerca de uma hora, Vitor Gonçalves e Ana Luísa Amaral, numa conversa gravada há uma semana, discorrem sobre a vida e a morte, a escrita e a verdade, o tempo e o vagar. 

Tudo isto mostrado pela primeira vez no dia em que aquela poeta maior da cultura portuguesa morreu.  

Assistir àquele programa foi, deste modo, uma experiência muito particular, inesquecível em diversos momentos da entrevista.  

Na mesma semana em que tínhamos visto, também na RTP, a conversa de Fátima Campos Ferreira com Pedro Burmester, igualmente interessante de acompanhar. Não poderíamos assim calar a vontade de dizer bem.  

terça-feira, 26 de julho de 2022

Noite de Verão


Noite tropical de 25 de julho de 2022. Eu, os canídeos e o castelo. Já vos disse que gosto muito de cães? Desde sempre tive uma relação especial com eles. Quando os vejo, normalmente vou ao seu encontro e converso mais com eles do que com os homens. Às vezes com resultados diferentes dos esperados: lembro-me de aos quinze anos o meu lábio ter sido rasgado por um cão traiçoeiro. Continuei na mesma amigo daqueles seres magníficos com olhos de candura única e fidelidade inultrapassável.
Compreendemo-nos com enorme facilidade. No passeio pelo castelo chamei pelo cão grande, olhou para mim, não disse palavra. Mas deixou-me estar. Logo percebeu que eu precisava do mesmo sossego que ele procurara todos estes anos.
Que quente estava a noite…

domingo, 12 de junho de 2022

Voto de pesar camarário pela morte de Matias de Barros


A pergunta sobre a reacção da Câmara Municipal de Viana do Castelo à morte de Matias de Barros circulou por entre os presentes nas exéquias fúnebres daquele jornalista. 
Em jeito de esclarecimento reproduz-se a carta recebida pela família com o voto de pesar aprovado em reunião camarária de 31 de Maio.

sábado, 4 de junho de 2022

A solidão


A solidão é um monstro de duas cabeças. Uma parece olhar-nos e sorrir, a outra é o retrato do mal e do desespero. Disputam uma à outra o domínio sobre nós. O indivíduo que não sabe falar consigo e tem medo da interioridade depressa se afunda no sofrimento imposto pela cabeça tinhosa. Um outro que escreva, ou crie seja o que for ultrapassa a solidão. A força do mal é, deste modo, vencida pela sabedoria alcançada por aqueles que estando fisicamente sós nunca o estão efectivamente.  

(Na esplanada sem mar)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Na missa do 7º dia de Matias de Barros


O meu pai morreu. Desde criança que tinha medo de ouvir isto e agora aconteceu. Às vezes sentia um medo aterrador da demora enquanto ele não chegava a casa, mas a minha condição de irmão mais velho fazia-me calar perante o Rogério. Agora sei que não volta mais. E estou a sofrer como um adulto perdido num labirinto sem saída. Alguém dizia que com o tempo vamo-nos habituando; não tenho a certeza disso, cada vez sinto mais a morte do meu pai. 

Depois do funeral percebi que a partir dali não teria mais ninguém com quem tirar dúvidas sobre o passado. A vida dos homens importantes que passavam pelo Café-Bar, em Viana, ou as histórias bem-humoradas do passado familiar apenas poderiam sobreviver com a memória do que o meu pai contara. Só que a minha memória está longe de ser perfeita e o Google não serve para estas coisas.

E os netos querem saber. E têm direito a isso. Mas sinto um receio imenso de não conseguir cumprir o legado do meu pai. De não vir a ser o “último cavalheiro” tal como disseram dele nos elogios fúnebres. 

Acho que vou ter de me deixar de formalismos monárquicos e pedir ajuda ao Rogério. A ver se juntos somos capazes de esperar pelo pai sem chorar.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Morreu o meu Pai !


Faleceu esta manhã, de causas naturais, Matias de Barros, decano dos jornalistas de Viana. Nasceu em 1935, em Neves-Vila de Punhe (Viana do Castelo) e colaborou enquanto redactor, primeiro no Notícias de Viana, e depois na Aurora do Lima. 
Fundou o jornal “O Vianense” em 1980 e foi seu director durante cerca de 40 anos. Esteve na génese da criação dos “Cadernos Vianenses”, publicação editada pela Câmara Municipal da cidade princesa do Lima. 
Colaborou com a RTP (Radiotelevisão Portuguesa) e com a Radiofusão Portuguesa (actual Antena 1) na produção de programas de assinalável sucesso junto do público alto-minhoto e nortenho. 
Publicou em 1973 o livro “Viana do Castelo - Capital do Alto-Minho” e em 1978 “As Comédias de Santo António de Portela Susã”. 
Foi correspondente dos jornais “Diário do Norte” e "Diário de Notícias”.

domingo, 22 de maio de 2022

Reencontro de amigos


Reunir, ao fim de quase quarenta anos, amigos que o foram durante a adolescência, é tarefa quase impossível. Há, no entanto, uma razão que pode eventualmente contrariar este vaticínio, e ela é a geografia dos lugares vividos. 

 

De facto, os rapazes e as raparigas que se vão juntando na fase inicial da vida em razão da vizinhança têm mais possibilidade de conservarem esse sentimento de proximidade. Eles não dançaram ou conversaram apenas juntos — eles viveram também quase em comunhão de cama e mesa.  

 

Principalmente quando há casas que sirvam de poiso comum. É o caso do grupo de amigos que se juntou por estes dias em convívio e que normalmente fazia da residência dos Painhas, nas Ursulinas, em Viana, a segunda casa de todos. 

 

A primeira vez que este almoço-festa aconteceu foi em Dezembro de 2019; logo de seguida surgiu a pandemia, e só agora foi possível reatar (com a ausência de alguns, mais uma vez por motivo da covid!) aquilo que se pretende tornar-se tradição.  

 

Mas atenção: saibam os leitores deste arremedo de reportagem que nem tudo é fácil neste revisitar de pessoas que pareciam perdidos na bruma dos tempos. A começar pelo reconhecimento facial de uns e outros, prosseguindo na inconfessada vistoria do volume das barrigas masculinas — exercício tétrico de resultados dramáticos — além dos efeitos conseguidos pelos cuidados estético-faciais e genéticos de todos.  

 

Mas pior do que isso, muito pior mesmo, é a constatação da razão dos velhos de outrora que nos avisavam de algo que nos recusávamos a aceitar, mas que a dolorosa sentença de que o tempo se foi, expressa no olhar cruzado de todos os que estavam na festa, confirmou de modo inapelável. Com uma velocidade supersónica a vida passou, havendo agora pouco a fazer para a mudar, para trocar de estrada, de profissão, de filhos, de sobrinhos, de noites, de recuperar as férias com que sempre se sonhou e nunca as tivemos, de substituir o nosso alfaiate por outro com mais mestria. 

 

E se por acaso o leitor pensa que não há lugar para sentimentos negativos numa festa como esta, fique a saber que a partir de uma certa altura da tarde o estado de espírito vai sempre piorar.

 

O momento clássico nestas coisas é quando damos conta daquilo que não fizemos e os outros fizeram da vida. Se alguma vez sonhamos em mandar um soco num idiota encartado que nos cansou tantas vezes, e nunca isso aconteceu, logo constatamos, entre os amigos da festa, que há quem parta o nariz dos outros e ainda por cima ganhe muito dinheiro com isso, dirigindo com destreza as rinoplastias cirúrgicas.  

 

Ou então, aqueloutra conviva que foi administradora da televisão pública, o tal meio de comunicação fadado para a carreira profissional do autor destas linhas, desde que a partir dos catorze ou quinze anos andou nos estúdios da RTP a acompanhar o seu pai, sem que dessa contiguidade com a magia televisiva tenha resultado coisa alguma.

 

A somar à … óh! agora não é possível contar-vos mais, porque a miúda mais gira da festa, por quem anseio há décadas, acaba de me vir buscar para dançar…

 

Até um dia destes!  

  

domingo, 1 de maio de 2022

À Matilde


Na vida nasce-se muitas vezes. Quando inauguramos um novo itinerário, no dia em que beijamos pela primeira vez, ou sempre que abdicamos da segurança da vida igual.

É o que acontece às mudanças que marcam o eclodir de um novo tempo. Finalizar uma licenciatura universitária constitui um dos exemplos disto mesmo. 

A Matilde torna-se hoje doutora em leis. A menina de seu papá, bonita, aplicada, persistente transformou-se numa mulher de capa e batina negras e fitas de curso vermelhas. 

Vai ser grande a Matilde. E feliz. Mesmo que para isso tenha de nascer outras vezes. Mas sempre com o sucesso a dar-lhe a mão. 

Do pai pode estar certa que sempre estará à sua espera. Do pai, da mãe, dos irmãos. O resto, bem o resto… só depende dela. E do amor também. Sempre. 

Muitas felicidades, minha querida filha. 

Do teu pai,

FSBB

quinta-feira, 14 de abril de 2022

A mãe


O mundo está todo aqui. A seiva e a vida em pleno. O acto de começar e a segurança proporcionada por quem amamos.  

A mãe orgulhosa segura nos braços o filho que é a eternidade possível. Ele é ela reconciliada com os demais. 

A realidade, por mais difícil que tenha sido, por algum tempo é suspensa. Nada mais conta do que este momento. Um pertence ao outro para sempre. 

Perante um quadro assim, a fealdade da guerra ou a mediocridade da multidão não significam nada.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Estrada transmontana


Vão todas para o mesmo sítio. Habituaram-se a isso a vida toda. Seguem o líder ou então aqueles que aparentam ser os mais fortes. 
Na estrada transmontana, a passarem junto ao carro, as ovelhas sucedem-se umas às outras.  
À frente, o homem de faces cavadas, pele tisnada pelo clima excessivo, acompanha-as. 
Lá atrás, os cães controlam a turba. São admiráveis no cuidado com que zelam por todos. A fazer inveja à maioria dos seres humanos. 

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Dia de Páscoa


A mãe. À espera de cada um de nós. Preocupada com aquilo que fazemos da vida. Sempre na esperança de que nada de mal nos aconteça. Na estrada da discoteca ou no dia em que nos formamos. 

E no primeiro divórcio, no segundo e na crise da meia-idade. Sim, naquele tempo em que passamos a não acreditar em nada do que tínhamos por certo.  

A mãe. O colo de que nunca nos afastamos em definitivo. Renunciar a ele seria morrer. Mesmo quando atingimos a idade em que tudo se torna possível. 

A mãe. Orai por nós. Queremos-te por perto quando chegar o tempo da Páscoa de cada um. Nesse dia vou deitar outra vez a cabeça no teu colo.

terça-feira, 22 de março de 2022

Quando a realidade ultrapassa a ficção


Voando sobre um ninho de cucos. Mas não daquelas aves cantoras que conhecemos dos nossos campos agrícolas; nem das que saíam de uma gaiola de madeira assinalando as horas. Não, do que aqui se trata é de um hospício que acaba de receber um novo hóspede, tão deslocado da realidade que o próprio Jack Nicholson olha para ele com ar de espanto. O caso não é para menos: o novato naquele espaço é um facínora da pior espécie. 

sábado, 19 de março de 2022

A meu Pai


De manhã não me lembrei que hoje é dia do Pai. Só na esplanada, pejada de famílias como é costume ao Sábado, é que se fez luz, com o tema a ser falado em muitas das mesas. 

Em casa, ao almoço, confirmou-se a efeméride. Estavam todos. Até a mais velha dos caçulas, finalista no Porto, estava presente. O próprio menu tinha sido escolhido em função dos meus gostos.

Olhei para aquela gente, a minha gente, e não lhes quis fazer a desfeita de não participar agradecido nos festejos — num dia em que habitualmente o meu pensamento se revolve numa dialéctica sem fim à vista. 

Tudo porque continuo a sentir-me mais filho do que iniciador do quer que seja. Talvez que o facto de o meu pai ser vivo e a presença e a lembrança dele ter muito impacto em mim explique isto. Alguém disse que apenas crescemos verdadeiramente depois de ficarmos sós no mundo. Aí sim, tornamo-nos adultos. 

No meu caso, as coisas não serão bem assim. Pouca gente sabe mas o meu pai viverá para sempre. Na sede do jornal, na Praça da República, no meu coração. E dessa forma continuarei apenas a ser o jovem sonhador aprendiz de escritor.

Os meus quatro filhos um dia compreenderão esta vontade inabalável.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Inconstância amorosa


Ontem os astros estavam em amena cavaqueira entre si. E nós fomos felizes como no dia em que experimentamos a pele um do outro. 
Hoje as coisas correram mal. Eu não estive bem e tu não estiveste muito melhor. Decidimos romper os dias que nos estavam destinados pelo amor. 
Amanhã tudo será melhor. Vamos voltar a ser nós mesmos. Com a liberdade de à tarde olharmos o mar sozinhos e à noite procurarmos alguém na pista de dança. Por volta das cinco da manhã vou querer-te de volta. 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Putin e o medo de si


Esta fotografia é todo um tratado, seja qual for o ângulo pelo qual a analisemos. Nela regista-se para a posterioridade uma reunião de Vladimir Putin com dois altos responsáveis militares.

Nada na disposição dos lugares ocupados por aqueles homens aponta, aos olhos de um ocidental, para um lastro de normalidade que seja. Putin sentado na extremidade da mesa e os dois generais a uns seis metros de distância. Como se o presidente da Federação Russa fosse um ser providencial, de natureza divina e, por isso, pertencente a uma dimensão transcendente.

Abdicando do pretensiosismo de produzir um retrato psicológico de quem não conhecemos, talvez seja útil, no entanto, relembrar aquilo que o senso comum popularizou há muito tempo: “o complexo de superioridade não existe; aquilo que julgamos como tal mais não é que a manifestação de um sentimento de inferioridade”.

Uma coisa afigura-se-nos indesmentível: um indivíduo que proceda como aquele da fotografia é, por certo, alguém inseguro, incapaz de olhar para dentro de si, frustrado de muitas situações, rancoroso dos outros porque são normalmente vistos como ameaça – ou então perspectivados como seres fracos com quem se estabelece uma relação do tipo senhor-vassalo.

Os sociopatas são identificáveis a partir de alguns destes traços. Normalmente são pessoas infelizes na medida em que não conseguem o maior dos seus obectivos: ser iguais aos outros.

Por via disso, tornam-se frequentemente perigosos nos relacionamentos. Por vezes não olham a meios para prosseguir metas de aniquilamento dos outros e, dessa forma, poderem aquietar sentimentos de fracasso.

Espero que os meus receios em relação à personalidade de Putin, de algum modo explanados nestas linhas, não se confirmem. As mulheres e as crianças em agonia nos escombros do Teatro de Mariupol merecem melhor sorte.