domingo, 27 de dezembro de 2020

A vida a recomeçar


Foi assim que comecei o dia. Um frio de rachar. Os campos coberto por um manto branco feito de gelo. Os cavalos livres a percorrerem a herdade. E eu, o homem toda a vida da noite, a recuperar a memória das manhãs. A única coisa boa proporcionada por este confinamento que encerra a vida à uma da tarde.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dia de Natal


O sagrado e o profano lado a lado. A campearem pela atenção dos homens. Como se a vida pudesse dispensar a introspecção ou a festa. 
Quem me conhece sabe que não sou religioso. Mas tenho de reconhecer que este maldito ano de 2020 aproximou-me mais do pensamento que da mera emoção.  
E, principalmente, duma componente da vida que a pandemia valorizou: a família. Estar junto de quem nos quer bem deve ser o objectivo maior de cada um. 
Feliz Natal, meus amigos — e, por isso, meus familiares. Dêem cá um abraço.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Nós nos outros


Dois anos a calcorrear as ruas deste país à procura de histórias de vida. Inicialmente publicadas numa página online a que chamou de “Nós nos outros”, foram reunidas este mês em livro. Maria Helena da Bernarda é a autora do conteúdo integral da obra: dos textos, das fotografias, dos apontamentos biográficos dos entrevistados — que se transformam em testemunhos difíceis de esquecer — e, principalmente, do projecto que parecia condenado ao insucesso, tal era a sua exigência em termos de disponibilidade pessoal.
Só que a Maria Helena da Bernarda é um ser humano especial. Tudo o que faz faz bem. Economista de formação, foi até há poucos anos gestora de topo em empresas de prestígio internacional. Até um dia em que achou necessitar de outros voos para se sentir realizada. Abandonou o invejável cargo que desempenhava e fez aquilo que de vez em quando repete: pegou na mota e andou estrada fora, sem destino, à procura de si e do mundo que via para além das janelas do gabinete de trabalho.
Desde aí, nem um só dia deixou de absorver o melhor que a vida pode proporcionar aos que a entendem: voltou a tocar piano, apostou em aprender a fotografar — com excelentes resultados — e dedicou-se a conhecer as pessoas aparentemente vulgares que via nas ruas e cafés de Lisboa ou nas vilas e cidades de Portugal. A interpelá-las com genuíno interesse, a saber dos amores e desamores que por elas passaram ou, então, dos êxitos e fracassos da vida profissional. Dessas entrevistas informais nasceram as crónicas diárias e agora o belíssimo livro, profusamente ilustrado com as fotografias tiradas pela autora aos rostos dos homens e mulheres que todos conhecemos da rua.
Mulher sem idade, igual hoje ao que foi ainda jovem, altiva no comando, e no entanto uma alma carinhosa a ouvir os insucessos dos outros, é assim a Maria Helena da Bernarda que em boa hora os grandes órgão de comunicação social deste país, e alguns do estrangeiro, descobriram e dela fizeram referência nas televisões e nos jornais.
Uma prenda de agrado garantido para qualquer altura do ano, com 352 páginas em papel couché e muitas fotografias, vendida a 29 euros o exemplar.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Beber para esquecer


DONA LURDINHAS — Meninas, hoje o Senhor Doutor não vem dar consultas ao Porto. A GNR não o deixou passar na auto-estrada. O bar é ali ao lado.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Adeus robalo


Disse ao empregado que era grande demais. Mas o robalo olhava para mim de forma aparentemente solidária, como que a querer partilhar a vida de peixe desgraçado. Tive alguma pena dele, à minha frente estendido, dissecado até à medula. Do seu corpo saía fumo, prova de que deveria ter veraneado nas águas quentes do forno da cozinha. Será que não merecia tanta pena como parecia? Provavelmente era eu o pobre coitado em tudo isto. Quer um bocadinho de azeite da travessa? — perguntou o empregado. Logo o robalo ganhou outras cores. Como se viesse de passar férias nas Maldivas. E eu em Matosinhos a olhar para uma criatura de Deus recuperada do cansaço de um ano de escritório — deitada à minha espera. Peguei nos talheres, olhei nos olhos o robalo e comi-o.