quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Lisboa


A cidade vista portas adentro. Da luz branca das ruas para a proximidade entreaberta da taberna. A intimidade colectiva à vista de todos. 

Lisboa é isto. Na Mouraria ou em Alfama. No Bairro Alto ou na Graça. No Castelo ou no Cais do Sodré.

O resto não é Lisboa. É Madrid ou Antuérpia. Avenidas Novas ou Restelo. Igual a todas as cidades. Menos na luz branca. 

O Sr. Raimundo encostado ao balcão bebe o copinho das cinco da tarde e diz que sim. Que não troca a Mouraria por Montparnasse. Bairro que é bairro ouve a Amália, evoca a Severa, chora o Marceneiro. 

E fala da vizinha nova, alemã, que comprou a casa da falecida D. Miquinhas. Mas quem sabe destes assuntos é o gato Recruta, sempre atento ao movimento dos aviões que passam à porta da taberna. 

Foto: Ana Luísa Pontes

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Amélie


A Amélie Battle Bastos morreu em dia de desespero. A tinhosa da depressão andava a rondá-la há algum tempo já. A tentá-la sem misericórdia dos seus dezasseis anos.

Do rosto doce da Amélie, dos sonhos próprios de uma adolescente, do amor ainda provisório desdenhou a maldita da doença.

Naquele dia a Amélie aconchegou no ombro a mochila do colégio, despediu-se da mãe e foi ao encontro do mar – o mar imenso da foz do Porto. Na esplanada da praia deixou os seus pertences e caminhou em direcção à estrada azul que se abria a poucos passos de distância. Entrou na água indiferente às pessoas felizes que costumam andar por ali. 

A Amélie já não se lembrava de como era ser feliz. Nem via possibilidade de o vir a ser. Tudo era negro à sua frente. Não conseguia distinguir a escuridão da claridade.

Por isso é que recusou os espelhos e procurou o reflexo do mar para se ver por uma última vez.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Rui Rio


Quem falou por todos, logo em 2018, foi o embaixador Martins da Cruz: “Não me revejo em pacóvios suburbanos”, a propósito de Rui Rio que havia ganho a liderança do PSD. Homem do Porto, que assentava os cotovelos à mesa e não tinha os modos do Tamariz, não podia estar à frente de um partido com aquela grandeza. 

Nos jornais e nas televisões a opinião era a mesma. Referia-se o nome do homem e logo os donos da opinião pública se sentiam na obrigação de dizer algo com piada. 

Esqueciam-se de algumas coisas básicas: Sá Carneiro era do Porto, e mesmo os opositores de Rio na conquista da liderança eram daqueles lados: Luís Montenegro de Espinho e Paulo Rangel também do Porto. 

Para além disso, dava mostras desde o início de ter ideias definidas acerca do que pretendia — e das quais nunca se afastou. Mais: provava, etapa a etapa, ter razão nas suas previsões e dava mostras da consistência dos quadros políticos enunciados. 

Ao mesmo tempo, os comentadores oficiais do regime continuavam a rir e até a mostrarem um esgar de desprezo pelo político nortenho nas suas apreciações. 

Quem me conhece sabe bem que nem a ideologia nem a história do PSD são próximas à minha forma de ser — talvez por isso possa ver melhor o comportamento dos que vivem à roda dos favores do líder. 

Há dias, Rui Rio invadiu o sossego da minha esplanada para perguntar se me podia cumprimentar. Disse-lhe que sim, mas aproveitei para o invectivar acerca do comportamento do PSD em matéria de Educação. 

Escutou-me com muita atenção e procurou contra-argumentar nalguns aspectos. Olhei com vagar para ele: estava vestido com algum gosto, tinha o cabelo bem tratado e um cachecol de um azul bonito. 

Mas, principalmente, aparentava uma serenidade surpreendente para quem vivia uma etapa-chave da sua vida política.

Para mal dos meus pecados, aquele homem ainda vai ser primeiro-ministro de Portugal.

Foto: Jornal de Negócios

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

A vida a três


Está quase a começar. Falta pouco. A vida vem aí em todo o seu esplendor. Falta a sirene da fábrica tocar, as crianças vacinadas deixarem de utilizar a máscara nas salas de aula, o Artur perdoar a infidelidade da mulher, a Iniciativa Liberal passar a ser constituída por pessoas adultas, o vinho Alvarinho tornar-se oferta nas mesas dos lares, o lítio ser descoberto no subsolo do Rossio, o Costa deixar de considerar-se o rei sol mesmo sendo mais esperto do que os outros. 
Fica ainda a faltar que a natureza se mostre poderosa e terna, autónoma do ser humano mas cúmplice nos grandes desígnios. 
Que se abram as cortinas do palco! A vida está pronta a irromper na sua inevitável simplicidade. A mulher, o bebé e o cão são aliados entre si. Cada um com as particularidades que a natureza impõe. Mas a graça da existência está aí. Em serem de modo diferenciado a verdade de si mesmos.