terça-feira, 27 de março de 2018

A menina Vera

Agente Policial - Como é que te chamas, minha filha?

Menina delinquente - Vera. 

A. P. - Sabes que caminhas nas trevas mas se acreditares no teu interior ainda estás a tempo de encontrar a Luz?

V. - Eu já lá fui uma vez mas o Benfica perdeu.

domingo, 25 de março de 2018

Mudança da hora


Não, não e não. Uma hora a menos! Mas quem se arvora em dono do tempo? Não gosto que usurpem o que é meu. Ainda não esqueci aquela vez que me roubaram um guarda-chuva caríssimo da Lacoste numa sala de professores. Ou que um docente catedrático atribuiu-me uma nota à frequência de Filosofia Social e Política sem sequer a ter visto. 

Não, comigo não. Numa hora o presidente Marcelo deixa de derrubar vinte pinheiros, a Marisa Matias de seduzir sete eurodeputados, a Joana de Vasconcelos de fazer pela milésima sétima vez o Coração de Viana, o Rui Veloso de musicar mais um poema do Carlos Tê, o António Costa de atrasar a sua ascensão ao cargo de chefe da Europa.  

Não, não e não. Uma hora é o tempo de ver as ondas do mar morrerem enquanto desenham os meus pés arregaçados na areia, é a página que se segue à outra e à outra para terminar de ler pela centésima terceira vez O Doidinho do José Lins do Rego, é o bocado da noite que me resta para procurar dentro de ti o grito que fará seres minha.

Nessa hora que nos querem roubar, o amor surgirá quando os teus olhos derem uma volta ao céu e a tua boca recuperar o vai e vem da respiração.

Será esse o tempo de pedirmos ao tempo que não ande mais. 

quinta-feira, 22 de março de 2018

Eu tinha prometido

E o que prometo cumpro. Hoje não vou falar de gatos. Vou falar de cães. E tudo porque malbaratam o investimento feito pelo Estado a pensar neles. Um WC que não utilizam. Chegam a alçar a perna pelo lado de fora e a regar de urina a estrutura exterior. Um desprezo. Já pensei em falar com eles e manifestar-lhes o meu desagrado. Tanto dinheiro dos portugueses deitado aos cães...

quarta-feira, 21 de março de 2018

O facebook, eu e os gatos

O prometido texto sobre os gatos é um dos mais difíceis que tive de escrever ultimamente. Por várias razões: exige argumentação complexa (filosófica mesmo), concisão nas ideias e polémica porventura desnecessária. O problema é que é no Facebook em que estamos nada do que atrás referi pode ser considerado atractivo para os seus utilizadores.
Vou por isso tentar ser o mais breve e linear possível no que a seguir escrever. 
Há duas correntes em discussão nos dias de hoje: uma que diz que ainda vivemos na modernidade e outra que afirma já termos mudado de paradigma e que atingimos a pós-modernidade.  
Esta segunda das visões interpretativas assegura que a racionalidade fragmentou-se e encaminha-se para o fim das visões sociais totalitárias. O advento da internet, do jornalista-cidadão, da democratização no acesso (e posse) dos meios de comunicação parece confirmar esta ruptura com a visão única da realidade de nós e dos outros. 
Sempre defendi que a interacção de ideias fomentada pelas redes sociais inevitavelmente traria vantagens para uma sociedade cada vez mais consciente, em virtude de as novas gerações configurarem um avanço na posse generalizada de instrumentos teóricos e técnicos. 
Por esta razão sorri sempre com desdém dos líderes de opinião que na televisão e nos jornais abespinhavam as redes sociais, como se só a opinião deles contasse. 
Há uns meses encontrei-me com Mark Zuckerberg no clube de Bilderberg. Disse-me ele que não desgostava do que eu escrevia mas para mantermos a hegemonia do pensamento e da moral globais sugeria temas menos disruptivos. 
Pedi-lhe para ser mais concreto. Ele então explicou: deve continuar a escrever para as mulheres (são os grandes consumidores do Facebook) mas não sobre as mulheres ou sobre o corpo delas. 
Não resisti a desafiá-lo para me sugerir temas. E então vejam só: comece pelos gatos, é sucesso garantido, depois vá progredindo sempre em torno dos assuntos aceites pela nova ordem global — a guerra na Síria, a crítica aos professores, a defesa dos interesses dos homossexuais, a condenação da importância nuclear da família, o elogio de um presidente da república que beije todos e defenda o interesse de alguns. 
Todos temas consensuais. 
A maioria dos leitores provavelmente não me conhece. Sou mau, cínico e defensor acérrimo da liberdade. 
Nos jornais já não se pode escrever de forma independente. Restam as plataformas digitais, pensava eu. 
Enganei-me. Vamos então escrever sobre gatos até o Mark se sentir enfadado. 
Por essa altura resolvi fazer a vontade solicitada há anos pelos meus filhos: aceitar um felino doméstico lá em casa.  
Chama-se Vodka e é uma gata. Foge e corre de nós e procura-nos a todo o momento. Os meus filhos chegam da escola e a primeira coisa que perguntam é onde ela está. Na semana passada perguntaram-me a medo: “Então, já gostas da Vodka?” Não disse nada. Que ingénuos! Sempre adorei animais. Aliás, o problema está exactamente aí. Gosto demasiado deles — sofro e divirto-me com eles como se eles fossem eu. Esse o motivo porque nunca os quis. 
Se uma prova disto mesmo fosse necessária basta olhar para as minhas mãos: arranhadas de conversar com a Vodka.  
De todos apenas o Sebastião não gosta dela (é o periquito lá de casa, que enviuvou há pouco tempo da Carlota, e sente a solidão e a sua vida ameaçadas pela gata). 
Ah, sim! O Sebastião e a minha inestimável assistente, a Dona Lurdinhas, que sempre que vem despachar ao meu gabinete vocifera baixinho sobre o aspecto das minhas mãos. 
Acerca dos temas a tratar proximamente no Facebook lembrei-me agora de um, consensual e condizente com a nova ordem global que todos queremos implementar: a necessidade de os jardins de infância funcionarem até às 23 horas para que os pais possam estar mais tempo nas empresas.  
Ora aí está. 

quarta-feira, 14 de março de 2018

Camisas Façonnable

A vida exige tantas vezes salvo-condutos para se atingir metas. Muitas das vezes são pertences relativamente óbvios: a inteligência, a beleza, o savoir-faire, a linhagem familiar, as notas escolares, etc. 
Mas há senhas de admissão que estão para lá de qualquer paradigma racional. A entrada nas discotecas da moda é um bom exemplo desta subjectividade sem explicação. 

Tudo isto começou com o alargamento dos círculos anteriormente confinados à classe média-alta. Portugal desenvolveu-se de forma rápida com os dinheiros da Europa, corriam os anos de 1990, o que fez com que novas gentes acedessem à prosperidade económica. 

As discotecas por essa altura estavam com filas imensas de jovens a tentar entrar pensando que o dinheiro compra tudo. Do outro lado da barricada estavam os porteiros das casas de diversão. Idiotas de cabeça geralmente rapada e tronco de árvore milenar. É evidente que de psicologia sabiam apenas que ela se aplica nalgumas actividades de pesca, chamadas de piscícolas. 

Nas discotecas Kapital, Kremlin, Plateau os enganos cometidos por aquelas cabeças ao vento são ainda hoje motivo de anedota. No ginásio era tudo mais fácil. À noite, as turbes ansiosas a olharem a porta de acesso, e as coisas a complicarem-se. 

No caso das raparigas a coisa mesmo assim era mais fácil: anos de actividade hormonal vivida na margem sul e na Damaia e as mini-saias das jovens ajudavam a tarefa. No caso dos rapazes, bem... aí... aí... não sabiam o que fazer!


Até que descobriram o tal salvo-conduto de que falávamos no início destas linhas, sem lógica mas eficaz: as camisas Façonnable envergadas pelos clientes. 
Ainda hoje me dá saudade recordá-las. Criadas por um costureiro de Nice, chamado Albert Goldberg, caracterizavam-se particularmente pela utilização do patchwork, uma espécie de junção muito bem feita de padrões diferentes. 


Resultado desta história: eram um sucesso aquelas camisas: os políticos, a gente do espectáculo, os banqueiros e os rapazes que queriam entrar nas discotecas, usavam-nas à noite. 

As consequências de tudo isto nem sempre eram divertidas: dificilmente não se encontrava nas festas uma camisa com o mesmo padrão da nossa e nas revistas lá estavam as vedetas com as camisas iguais às que tínhamos lá em casa. Eu então tinha um azar com um figura muito conhecida da televisão, coincidência que aliás constituía motivo de gozo por parte dos meus colegas. 


Uma vez, num hotel, eu e o Belmiro de Azevedo cruzamo-nos na entrada de uma sala, olhamos um para o outro, e lá estava a minha Façonnable no corpo dele e a dele no meu. Igualzinhas. 
No ano 2000, Goldberg vendeu a marca por 370 milhões de dólares a uns americanos que depressa adulteraram o ADN das colecções que se seguiram. 


Outros logotipos e outros nomes entretanto substituíram aquele, embora nunca com o mesmo impacto. 


Qual não foi o meu espanto, este mês, quando vi o catálogo Primavera-Verão da Façonnable. As camisas patchwork voltaram. E mais baratas que há vinte anos. A da fotografia que acima se publica custa 165 euros. Não tem o desenho do Albert Goldberg mas é o que se pode arranjar. Já podemos ir outra vez à discoteca. Só espero que as raparigas continuem igualzinhas. 

segunda-feira, 12 de março de 2018

O gato


É nosso às vezes e quase nunca. Só quando ele quer. Esgueira-se por qualquer lado e volta e vai outra vez. Arranha quando quer brincar e sorri o malandro. Ronrona deitado ao lado do dono como se fosse o ser mais dócil de todos. Mia quando quer seduzir e obter alguma coisa. Gosta do calor desde que não seja demasiado. Nunca se sabe o que vai fazer a seguir. E olha terno quando está para aí virado; outras vezes levanta em curva o corpo e olha em desafio. Nesses momentos fica em posição de ataque. Até lhe dar vontade de roçar as pernas do dono num vai-vem de quem sabe namorar. Deita-se no colo das crianças como se fosse uma delas. E lambe o rosto das pessoas explicando-lhes que é assim mas não é mau tipo. Sabe-a toda. Parece as mulheres. Por isso é que elas gostam tanto de gatos. Revêem-se neles. Olha, já se escapou! Como eu gosto de cães.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Meu Deus

Tenho-o dito muitas vezes: gostava de acreditar numa realidade transcendente que me trouxesse conforto mas também inquietude. Na resposta aos meus limites e, principalmente, na descoberta de quem sou. Pedi a sábios da igreja que me ajudassem nessa tarefa. De nada valeu. Não consegui ouvir ninguém absolutamente outro chamar por mim. Dar-me a mão e explicar. Continuo, por isso, um ser limitado pelo tempo e pelo espaço, impossibilitado de ser mais do que isto que sou. Um ser condenado a ter um fim, um adeus até sempre.  Tenho assim muita pressa. Tanta que às vezes não consigo fazer nada. Fico tolhido pela angústia de nunca o conseguir. De nada deixar que sirva de marca de mim. De escrever bem, de ser bom pai, de primar pela capacidade de perceber tudo, de deixar um sinal nos demais. Para mim a imortalidade é isso. Não no sentido de vencer o tempo. Isso seria ser religioso e isso não consigo, já o disse. Mas antes de ter sido o melhor que é possível. E a angústia reside aqui. Não deixa tempo para nada. Para pararmos para pensar. Para nos sentarmos na esplanada e olharmos.Temos de apanhar a auto-estrada e voarmos a caminho da conferência, do lançamento do nosso livro, da entrevista na televisão. Ou então de nada disto. Da mera inscrição imorredoira do nosso nome na árvore, da publicação da quadra que fizemos a São João no jornal local. Custa tanto sermos mais que a terra e a época que nos couberam em sorte. Sermos deus de nós mesmo. Maiores do que sempre fomos. Eu quero ser forte para aspirar a ser simplesmente eu. Escritor de reconhecido mérito, sábio de tanto saber sobre a vida e sobre os outros. Só. Mas isto é tanto. Seria quase ser religioso. E eu não sou. Sou apenas alguém que quer gostar de si. É isso. É esta a imortalidade possível.