quarta-feira, 26 de abril de 2023

Amor condicionado


“Vocês, mulheres, nasceram para dar cabo da cabeça aos homens...” 
“Ai, não, senhor Raimundo, desta vez é a sério. Finalmente encontrei o homem da minha vida. É bem parecido, faz consultoria no ministério, tem três carros e não falha um jogo em Alvalade. Além disso é escritor”, diz a Lola com um pontinha de vaidade.
“Escritor? Então o serviço é mais caro. Não demora nem três meses e a menina está aqui outra vez. Os escritores querem estar sempre a experimentar o mundo no corpo das mulheres. Saltam de um vale para uma montanha depois mergulham no rio para se anicharem por fim na planície. Não se pode acreditar neles”, diz o sábio do senhor Raimundo.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

González e o socialismo actual


Sinto-me chocado ao ver Felipe González na festa de um partido que nada tem a ver com aquele que um dia conheceu. Não sabe o que se passa em Portugal mas eu lembro-me de o ver (nunca esquecerei o tamanho daquele nariz) ao lado de Mário Soares num tempo em que a Europa contava com um naipe de políticos de excepcional qualidade. 
O PS português é hoje um partido populista, sem ideologia e sem desígnio claro. Esquecido que nasceu com homens e mulheres que se distinguiam na área da cultura, do direito e da docência.  
Actualmente os seus apoiantes votam no PS, amanhã no Chega, resultando a sua volubilidade da ignorância programática e da preferência manifesta no bota-abaixismo vertido nas caixas de comentários a propósito dos outros, a quem culpam pelas suas frustrações pessoais. 

Foto Público

sábado, 15 de abril de 2023

Reconversão do centro histórico de Viana





Esta semana recebi uma grande notícia em Viana: a antiga Pastelaria Caravela foi comprada e ainda este Verão reabrirá. Para quem, como eu, sentia enorme tristeza quando visitava a Praça da República – vazia de gente e de bulício –  a reabertura da Caravela reveste-se de uma grande importância. 

 

Foi-me também dito que uma empresa de grande sucesso no sector da pastelaria e panificação tentou alugar o espaço dantes ocupado pelo Café Américo, o que seria a cereja no topo do bolo. Os mais novos que não entendam a importância da restituição à praça do Café Américo, pensem no equilíbrio estético conseguido com uma esplanada no flanco oposto ao da Caravela. Lembrem-se que actualmente a Praça, em termos de indústria de cafés e restaurantes pende apenas para um dos lados, o que a empobrece em termos visuais e não só.

 

Por último, uma provocação: a última reconversão urbanística da Praça da República data de 1989. O centro histórico foi, todo ele, nessa altura, pensado de acordo com a ambiência de uma cidade medieval, tal como acontece em Guimarães e nalgumas zonas de Braga. Só que Viana tem o seu apogeu histórico não na Idade Média, mas sim na Idade Moderna, traduzida ao nível artístico no Renascimento e nos seus desdobramentos, Maneirismo e Barroco, o que a torna muito diferente na concepção urbanística. 

 

A minha sugestão é repensar,  com o engenho de Siza Vieira ou de Souto Moura, ou dos dois, o centro histórico da cidade capital do Alto-Minho. Guimarães é o que é hoje em termos de reconhecimento nacional por causa do plano de reabilitação urbana levado a cabo por Fernando Távora nos anos 1980 (ao contrário do que aconteceu em Braga onde se construiu sem um projecto geral definido).

 

Viana está a precisar de uma reflexão urbanística de monta urgentemente e, muito em particular, do casco histórico. Quem sabe se não serão recuperadas as cores branco e negro do calcário da placa central (ou algo assim) da Praça da República? Ou mesmo retirados os painéis envidraçados nos baixos dos antigos Paços do Concelho. Ou ainda proibidas as longas tiras publicitárias que tapam as varandas de ferro forjado das casas do centro de Viana.

 

FOTOS:

1 - Pastelaria Caravela;

2 - Café Américo (naquele espaço comercial com as montras tapadas com painéis publicitários );

3 - Exemplo do que não se deve fazer;

4 - A praça nos inícios do século XX.

sábado, 1 de abril de 2023

Os amores nunca contados de Roberto Cotrim e seus companheiros na ilha deserta


Este é o relato da sobrevivência de três indivíduos, iguais a muitos de nós, numa ilha do mar das Caraíbas, perto de Trinidad. São eles o Roberto Cotrim, de origem portuguesa e emigrante em Hamburgo, o Wednesday Saliou, descendente de camaroneses nascido em Berlim, e a Camila May, inglesa a viver há muitos anos em Munique. Quando o destino os juntou na ilha, nenhum deles se conhecia, e muito menos suspeitava que as suas vidas se iam entrecruzar de um modo tão intenso.
Em frente às cabanas de madeira onde dormiam, as areias muito brancas espraiavam-se até ao mar. Mais nenhum ser humano andava por aquelas paragens, a vida manifestava-se na natureza de origem  tropical e na enorme quantidade de bichos que por ali apareciam. Sem contar com o viveiro natural de peixes, mariscos e moluscos de toda a espécie que as águas caribenhas albergam.

Roberto e Wednesday foram os primeiros a chegar à ilha. O português logo se revelou o mais influente na tomada das decisões e o menos operoso nas tarefas do dia a dia. Inteligente, com quarenta e alguns anos, diretor de um jornal destinado à emigração e eterno candidato a escritor, notava-se nele o cansaço de situações vividas que queria deixar para trás. A maior parte das vezes manifestava a vontade de estar só com os seus pensamentos.

O Wednesday era muito diferente. Dócil, operoso, pescava o peixe, caçava as presas, cozinhava, e suportava os desvarios de Roberto. Impressionava pelo seu porte físico, qual Adónis negro, rosto harmonioso e corpo preenchido por músculos herdados de gerações de camaroneses habituados ao trabalho braçal. Sofria em segredo, no entanto, desde adolescente por ter um pénis pequeno. Chamava-se Wednesday, numa homenagem do seu pai à vitória do Porto, na final da Liga dos Campeões Europeus, disputada em 27 de Maio de 1987, uma quarta-feira, dois dias antes do seu nascimento. Era professor de matemática num liceu de Berlim.

Só depois surgiu a Camila, um alvoroço em forma de gente, como sempre acontece quando uma mulher invade um reduto masculino. Não era bonita, longe disso, era magra como uma inglesa das antigas, tinha uma espécie de malota, salve seja, no cimo das costas e um andar desconjuntado. Fora isso, destacava-se pela boa disposição, acerto das sentenças que proferia a propósito de todas as coisas, capacidade organizativa e, claro, visão prática do mundo efabulado em que aqueles dois tinham andado atá ela aparecer.

Para além disso, conforme se veio a verificar mais tarde, era versada em matéria de amor e de sexo, coisas que não se podem considerar despiciendas numa ilha deserta. Ainda por cima, sabendo-se que os três habitantes daquele espaço andavam permanentemente nus. 

A verdade é que, logo na noite em que a Camila chegou, depois de o Wednesday lhe ter oferecido uma galho florido que colheu enquanto caçava, dormiu na cabana dele e durante todas as noites que se lhe seguiram.

A este respeito convém esclarecer que as noites com o negro Adónis só aconteceram na sequência da recusa continuada do Roberto Cotrim em deitar-se com ela. Camila tentou desde o primeiro momento, mal o apanhou sozinho:

– Nem vale a pena tentares, nunca o aceitarei – disse o jornalista com voz compassada, própria de quem sabe o que afirma  – hoje seria só sexo, amanhã também, daqui a uns tempos poderia ser outra coisa. E não quero mais, a minha vida foi toda isso. Vou conservar a liberdade que encontrei nesta ilha.

– É a primeira vez que vejo alguém confundir o amor com a falta de liberdade. Pelo contrário, o autodomínio só acontece quando sentimos que gostam de nós. Sem isso não é possível  sermos livres do medo, do futuro, da morte. E felizes, claro...

– Pode ser que um dia te venha a dar razão, por agora quero quebrar o ciclo que parece não ter fim de um percurso feito de algumas alegrias, mas também de enorme sofrimento. Sinto-me cansado – rematou a conversa o Roberto quase escritor.

Os dias seguiram tranquilos no paraíso em que aqueles três habitavam. O mar transparente entabulava conversa com eles todos os dias, umas vezes a aquietá-los quando nele avançavam a nado, outras falando lá longe, mas manifestando-se sempre atento. O sol muito claro fazia o mesmo, já os tratava como amigos.

Mas a passagem do tempo ainda que parecendo nada modificar, acaba por deixar a sua marca. 

Num fim de tarde, estava o Wednesday a pescar para o jantar, no mar em frente às cabanas, enquanto o Roberto pensava deitado na areia. A Camila aproximou-se do jornalista e deitou-se ao seu lado. O silêncio foi a linguagem adotada pelos dois durante alguns minutos até que ela voltou ao assunto de sempre:

– Não sei como é possível alguém recusar o amor com um cenário destes, a tranquilidade e o sol a envolver-nos.

Nessa altura, Wednesday vê-os e agita os braços em jeito de saudação. Camila responde-lhe  esbracejando também. Roberto continua calado e quieto.

– Sabes uma coisa? – insiste ela –Vou inscrever-te num curso de inteligência emocional com um grande psicólogo, o Dr. Quintino Aires. Talvez seja a melhor forma de redescobrires o amor, seja pelas pessoas que participam nas sessões virtuais com ele, seja pelos livros que veneram. Ou então pela sabedoria do formador nestas matérias. 

O português continua mudo. Ela resolve finalmente não dizer nada e aproveitar o sol a percorrer o corpo de ambos. A sensação de quietude torna-se agradável, a paz envolve-os e do resto a natureza encarrega-se. A representante do género feminino naquela ilha olha de soslaio para o centro do mundo do homem a seu lado e vê-o erguido em direção ao sol. Levanta-se sem disso fazer alarido, pega no promontório, baixa o corpo de forma lenta e mete-o dentro de si. 

Segue-se um vai vem dominado pelas ancas e pelas coxas experientes da Camila, num movimento vagaroso, mas firme, enquanto o Wednesday detém-se imobilizado pela surpresa no mar em frente dos amantes.

As mãos dos dois fincam com cada vez mais força as areias que lhes servem de leito, o coração bate ansioso e, nesse momento, aproxima-se pelo ar um helicóptero da RTL5, a estação televisiva organizadora do reality show em que os três magníficos participam.

Da aeronave em forma de pássaro saem homens, mulheres e um sem número de máquinas. É a noite do espetáculo final da 48ª edição do programa. A praia ilumina-se com potentes holofotes, um homem vestido fala para as câmaras, entrevista os concorrentes e anuncia o vencedor escolhido pelos telespectadores: Wednesday Saliou.

No dia seguinte já a ilha é apenas saudade. Camila May vai viver com o alemão-camaronês, e de tempos a tempos visita a cama do jornalista português. Cada um deles procurando no outro a liberdade.