sábado, 29 de dezembro de 2018

Festas felizes


O Natal já acabou. É pena. Era lindo o Natal deste ano. Desceu pela chaminé, pé ante pé, a julgar que o perfume que trazia não ia denunciar a sua presença. Como se chama? — perguntei eu. Soraia de Natal e Chaves — disse com voz de cópula de amor. Hesitei. Devia dar a mão num cumprimento formal ou beijá-la? Decidi-me pela pela segunda hipótese. Dei-lhe um beijo rápido na mão. E o que vem aqui fazer? Vim entregar-lhe a prenda deste Natal — respondeu. Foi mesmo ali, na sala iluminada pelo fogo da lareira, que comemorei o nascimento de Deus Nosso Senhor. Rezando eu e ela à paz no Golfo Pérsico e na Guatemala. Foi lindo o meu Natal. 
Agora vem o Ano Novo. E a noite dos Reis. Já mandei limpar a chaminé. Sabe-se lá se o meu coração não vai ser assaltado outra vez.

sábado, 15 de dezembro de 2018

O bebé que não gostava de televisão


Rui Zink premonitório nesta obra-prima da literatura infantil: A Matilde, naquela altura com apenas dois anos de idade, ainda gostava de televisão. Hoje, caloira de Direito, já não gosta. Da mesma forma que os irmãos mais novos nunca chegarão a saber o que foi um dia a televisão. Nem eles nem todos os outros que têm a mesma idade. A televisão para eles é algo que integra uma plataforma de comunicação distribuidora dos diversos conteúdos em streaming. Possibilitando que cada um veja o que quiser às horas que quiser (é escusado pensar em ir ao cabeleireiro e falar do concurso transmitido no dia anterior). Dando, deste modo, ao indivíduo autonomia e também solidão. E assim vai o mundo.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Cavalinho de romaria


Foge cavalinho, foge... desse carrossel em que te aprisionaram, curva perpétua de uma vida sempre igual, vertigem da mentira que nunca se tornará verdade.
Salta da pista e lança-te na planície sem fim -- espaço de liberdade onde persigas a esperança de encontrares o amor, a natureza, a felicidade. Num horizonte sem fim e sem música de romaria. 
E se puderes, cavalinho, leva-me contigo, prometo-te o silêncio e a paz de que tanto precisamos.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Violoncelo com corpo de mulher


Eu tinha um violoncelo. Era castanho, da cor da madeira. Cheirava a sândalo e todos o invejavam. Quando dedilhado nas cordas a música que dele se ouvia pedia meças ao som do mar. 

Resolvi envolvê-lo num vestido preto a ver se o subtraía à cobiça. Em má hora o fiz. Olhá-lo passou a ser o mesmo que ouvir as sinfonias de Beethoven sem ninguém as tocar. O violoncelo a cheirar a sexo e a sândalo nunca mais foi só um violoncelo. 
Fiz então aquilo que me pareceu mais eficaz para afastar a volúpia dos meus amigos da onça. Tirei da santa que casou comigo o colar que um dia lhe ofereci. Só assim conseguiria transformar o alvo do meu transtorno numa senhora de casa, cuidadora do marido e dos filhos que havia de ter. 
Idiota de mim. Quando percebi que a mulher-violoncelo a cheirar a sândalo, vestido negro a realçar-lhe as formas, seios de leite prontos a alimentar a prole, era mais explosiva que a bomba de Hiroshima, já era tarde. Já estava a cuidar dos filhos dos outros.

TEXTO: Francisco Sérgio de Barros e Barros
FOTOGRAFIA: Fátima Vicente Silva
CURADORIA (da iniciativa de juntar textos a trabalhos de fotógrafos portugueses reconhecidos): Maria Helena da Bernarda