domingo, 9 de dezembro de 2018

Violoncelo com corpo de mulher


Eu tinha um violoncelo. Era castanho, da cor da madeira. Cheirava a sândalo e todos o invejavam. Quando dedilhado nas cordas a música que dele se ouvia pedia meças ao som do mar. 

Resolvi envolvê-lo num vestido preto a ver se o subtraía à cobiça. Em má hora o fiz. Olhá-lo passou a ser o mesmo que ouvir as sinfonias de Beethoven sem ninguém as tocar. O violoncelo a cheirar a sexo e a sândalo nunca mais foi só um violoncelo. 
Fiz então aquilo que me pareceu mais eficaz para afastar a volúpia dos meus amigos da onça. Tirei da santa que casou comigo o colar que um dia lhe ofereci. Só assim conseguiria transformar o alvo do meu transtorno numa senhora de casa, cuidadora do marido e dos filhos que havia de ter. 
Idiota de mim. Quando percebi que a mulher-violoncelo a cheirar a sândalo, vestido negro a realçar-lhe as formas, seios de leite prontos a alimentar a prole, era mais explosiva que a bomba de Hiroshima, já era tarde. Já estava a cuidar dos filhos dos outros.

TEXTO: Francisco Sérgio de Barros e Barros
FOTOGRAFIA: Fátima Vicente Silva
CURADORIA (da iniciativa de juntar textos a trabalhos de fotógrafos portugueses reconhecidos): Maria Helena da Bernarda 

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