segunda-feira, 29 de junho de 2020

Em memória do meu liceu


Uma vez li num livro que um miúdo francês disse à mãe: “Não vou voltar à escola; lá só ensinam coisas que eu não sei”. Nunca mais esqueci isto. A afirmação fez ecoar em mim uma série de recordações da escola que frequentei. E não eram felizes as memórias desse tempo.
A escola nunca gostou de mim; e eu devolvi-lhe com igual ênfase aquele sentimento. Frequentava as aulas, mas não escutava uma só palavra do que nelas se dizia. Lembro-me de os professores queixarem-se desse comportamento aos meus pais, de quem eram amigos: “Não percebo o vosso filho. Ele está sempre com a cabeça na lua.”
Retribuo-lhes agora, passados estes anos todos, o epíteto com que provavelmente me brindavam nas reuniões de avaliação: “Mau aluno.” Pois também eles eram maus, muito maus professores. Eram arquitetos, engenheiros quase formados (mas que nunca completaram o curso; não precisavam), contabilistas que sabiam apenas da vida que aos números sucedem os números, mulheres muito velhas que esperavam pela reforma que não mais chegava (fui a alguns velórios de professores).
Contas feitas, cheguei ao 11º ano de escolaridade sem saber nada do que se ensinava naquele liceu. Nada ou quase nada. Claro que as notas eram tão tristes como as minhas aulas. Um autêntico desastre. Sobravam as meninas de olhos bonitos nos intervalos. Aí sim, acordava para a vida. E nesses minutos compensava o desfiar monossilábico das palavras que os professores diziam naqueles cinquenta minutos de tortura.
Ainda por cima esses engenheiros e arquitetos e velhas de pantufas por causa dos diabetes desconheciam algo de que não fazia segredo, mas ninguém quis saber: desde os nove anos de idade que devorava os livros todos que pelos meus olhos passavam. Aos onze anos tinha lido já os principais autores brasileiros, a maioria dos livros deles, aos doze e treze os americanos e os russos. Isto no tempo em que não ouvia nada do que os velhos mestres diziam nas aulas. Uma ou outra professora de português desconfiaram de qualquer coisa naquele miúdo que estava, mas ao mesmo tempo não estava, na aula. A mãe do José Eduardo Agualusa aconselhou-me livros de autores portugueses, falava comigo depois da aula, já os outros se tinham ido embora.
Lembro-me de uma vez me ter vingado a sério da escola, quando os meus colegas de turma tiveram de ler em voz alta um texto do meu pai que estava no manual de Português, sem que alguém naquela sala fosse capaz de nos associar um ao outro.
No décimo segundo ano, deu-se a viragem. 
Nesse tempo, o último ano do secundário era constituído apenas por três disciplinas, e nelas tinha de se investir estudando os temas de forma autónoma, como se fazia na universidade. Não havia um manual único para cada tema. A necessidade de investigar exigia de nós que procurássemos outras fontes, outros autores. E então mudei um pouco a visão que tinha do liceu. A crise de 1383-85 interessava-me, e as raparigas que se esforçavam uma, três, quatro, cinco vezes a dar à perna para pôr o motor da mota a funcionar, conseguiam fascinar-me ainda mais.
Vistas a esta distância, as recordações do liceu fazem-me sorrir e, ao mesmo tempo, deixam-me seriamente preocupado. E tudo porque o ensino de hoje pouco mudou em relação ao daquele tempo. A mesma procura da mediania achada por uma bitola igual para todos. Além de que, e como se isso não bastasse, as motas arrancam de um modo cada vez mais fácil.