quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Patrícia Carvalho


Veio do Barreiro estudar jornalismo para Lisboa. Não foi fácil o tempo do curso. Queria aprender tudo, ao mesmo tempo que se esforçava para ajudar a custear os estudos.  
Lia, ouvia os outros e, principalmente, perscrutava em redor com aqueles olhos grandes, da mesmo forma que faz hoje. 
Há 11 anos que trabalha em televisão. Entrou na SIC sem pedidos encomendados, só ela e o Barreiro, cidade que nunca abandonou e de onde é originário um carácter próprio, da mesma argamassa da Muralha D’Aço. 
Parece franzina e é um ciclone que aprendeu a soprar a bordo do cacilheiro entre as duas margens. 
Defende-se sem precisar da ajuda de ninguém, a ela e à família, o seu bem mais precioso. 
Continua a esforçar-se no trabalho tal como se tivesse começado agora a ser pivô. Informa-se das matérias, mergulha nas notícias sejam elas políticas ou de futebol. 
E depois aquele ar de menina que continua fascinada com o castelo encantado, mesmo que, todos o sabem, o mundo da televisão por vezes se assemelhe mais à casa dos horrores. 
Talvez que a sua genuína simplicidade desarme os outros: fala e ri com a cabeleireira, com o coordenador, com a operadora de câmara, com a vida. Sempre com um sentido de humor desarmante. 
Não se acha especialmente bonita. Diz que é a maquilhagem que a transforma. 
Só não sei se será também esse o motivo de continuar a parecer uma boneca que todos gostariam de ter como parceira dos momentos menos bons, sempre que precisam de desabafar. 
Meus senhores, apresento-vos a mais bonita pivô da televisão portuguesa: Patrícia Carvalho.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O senhor do adeus

Entre as figuras que preenchem o meu imaginário, o Senhor do Adeus ocupa um lugar especial. Alto, de porte aristocrático, sobretudo comprido assertoado, cachecol a condizer, mão direita a acenar a ele mesmo, à noite, ao taxista rezingão, ao homem que viaja ao lado da melhor amiga da mulher, à lua e aos anúncios de néon, aos irmãozinhos que no banco de trás absorvem o mundo todo que corre veloz ao lado do automóvel. 
Mas, principalmente, o Senhor do Adeus escarnece da vertigem sempre a mesma dos dias que se repetem. Provoca a diferença, sacode o marasmo que é sonífero das vidas sem esperança. 
E faz por momentos esquecer aos transeuntes os objectivos propostos pela direcção comercial, o dossier encostado ao peito à espera de ser revisto noite adentro, as parcelas do orçamento familiar que é curto. 
O Senhor do Adeus nunca trabalhou. Não precisava. A família no seio da qual nasceu era abastada, felizmente. O que seria dele se tivesse de cumprir a monotonia do escritório, as horas para abrir e fechar, as aulas para dar? Não aguentaria. 
Nasceu poeta, um performer nato. Capaz de rir na cara da solidão. E de querer fazer parte da vida de todos. Mas por que hão-de os adultos estacar perante a vontade de saber quem é aquela senhora-desejo que desfila a caminho do emprego, de calar a vontade de participar na conversa sobre arquitectura dos dois jovens que olham a cidade, de abraçar o mais só dos velhos?
João Manuel Serra, o Senhor do Adeus, gostava de parar o tempo particularmente na Praça do Saldanha, onde passavam e passam as mulheres mais bonitas de Lisboa. Tinha bom gosto. E inteligência para saber que no fundo todos precisamos uns dos outros. “Eles fazem-me melhor a mim do que eu a eles” disse uma vez referindo-se aos que saudava. 
Morreu em 2010. A voragem da mediocridade campeia agora à vontade. É urgente outro Senhor do Adeus. 
Eu não me importava. Sempre gostei de cumprimentar os pessoas que não conheço. À custa disso os meus filhos gritam de vergonha e dizem que querem sair quando eu conduzo e digo adeus e toco a buzina a toda a gente. 
Não percebem nada. Um dia destes visto o meu sobretudo Gucci, na mão direita levo o saco da Rosa&Teixeira com o cachecol Scarf que vou usar no Saldanha. Ai vou, vou.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O PSD e Elina Fraga

 

O PSD continua a ser um saco de gatos muito maus. Afastado do poder e, em consequência disso, sem um caudilho que ponha e disponha à livre vontade, afunda-se em lutas internas sem qualquer interesse extra-partidário. É a disputa dos egos que se sobrepõe a tudo o resto. 
No Domingo passado assistiu-se a mais um episódio desta triste história de 42 anos. Aliás é por estas e por outras que muitos dos portugueses não querem saber dos partidos. Preferem a universidade, o mundo empresarial ou, então, a cultura. 
De quando em quando lá aparece um elemento novo neste emaranhado patético de emoções. Dá a cara, apresenta ideias próprias que dificilmente serão aceites e põe em causa a família e a vida pessoal que era até então a razão de quase tudo. 
Foi assim que Elina Fraga viveu estes últimos dias. Convidada pelo presidente do partido e de seguida apupada pelos correligionários. Só porque tem ideias próprias e luta por elas. Tal como fez sempre. 
Mas não é de pessoas desta estirpe que a política precisa? É, desde que não ensombre o protagonismo mediático dos medíocres. Nem contradiga a paixão clubística que envolve cada um dos governos.  
E estes parecem ter sido os pecados de Elina Fraga: enquanto bastonária pôs em causa uma reforma judicial recusada pelos advogados, que tinha em vista retirar ao interior do país um dos últimos bastiões de pertença a um todo nacional. 
Exactamente o que agora em uníssono se sentem na obrigação de defender, um ano depois de os fogos terem posto a nu os erros clamorosos praticados pelos diversos governos ao longo de muitos anos, quando esvaziaram de gente e de instituições uma parte considerável do país. 
No dia a seguir a ter sido vaiada pelos elementos do aparelho partidário veio a Procuradoria-Geral da República a terreiro deitar achas para a fogueira: que sim senhora, a antiga bastonária estava a ser investigada pelos senhores procuradores. 
Quem mandou Rui Rio pôr em causa o trabalho imaculado da procuradoria? Tudo isto é muito triste. Portugal avançou em quase tudo menos em arestas por limar da vida democrática e do sistema judicial. 
Mas que o velho PSD não se engane: as adversidades fazem mais por Rui Rio e por Elina Fraga que os discursos dos deputados que o são há três décadas e que pululam no Partido ou os artigos escritos pelos saudosos da União Nacional no jornal Observador. 
Conheci a antiga bastonária meses antes de ter sido eleita para aquele cargo. Mulher de princípios, combativa, esforçada, competentíssima, advogada dos pés à cabeça, diferente para melhor que a grande maioria dos seus colegas de profissão. 
O PSD, que não é o meu partido, vai ter de apelar ao que tiver de melhor nas suas reservas patrimoniais. Elina Fraga é uma mulher sem medo tanto da disputa intelectual quanto de uma qualquer manifestação de violência física.
Uma vez, na assembleia geral onde se ia decidir a agregação da escola onde estudava a filha (aconteceu o mesmo por esse país fora, sem que a comunicação social tomasse conhecimento da não-democraticidade do processo, tal era o deslumbramento dos opinion-maker acerca do consulado de M. Lurdes Rodrigues), a nova vice-presidente do PSD viu-se de forma crescente rodeada de indivíduos que a queriam intimidar e ao mesmo tempo impossibilitá-la de intervir em público. De nada valeu o caciquismo contra a razão e a lei. 
O melhor é os arautos de um tempo que ninguém mais quer — só eles é que não perceberam — buscarem no estudo e na inteligência colectiva estratégias novas de luta.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O tempo sem retorno

 

Há dias fui ao funeral da mãe de uns amigos. Viajei 300 quilómetros para me reencontrar com um tempo da minha vida. O da adolescência. Éramos cerca de 20 rapazes que estávamos dia e noite juntos numa casa. Que pertencia à senhora que agora morreu e ao marido também já levado pelo fim do caminho.  
O quanto aquela mulher de excepção aturou dos tais 20 seres cheios de sangue na guelra! Maratonas de jogos de King que duravam vinte e quatro horas, noites sucessivas de conversa sem destino (destiladas com a ajuda de litros de álcool), os primeiros corpos de mulher dançados à razão de três bailes por semana, entre tantos outros momentos que nos fizeram bem e mal. Como não podia deixar de ser tratando-se da vida a ser experimentada por adolescentes. 
A importância da Dona Adelina Painhas em todo este ritual muito demorado de passagem para o tempo adulto foi crucial.  
Ela geria aquela casa. Discreta, mal se via mas controlava tudo dentro do possível. A vida dos filhos, da família toda e daqueles 20 jovens.  
Ainda por cima, como se tratasse de uma partida do destino, à senhora que nunca saía do lar-mater (apenas via as ruas por detrás dos vidros do carro sempre que ia ao cabeleireiro), o marido — um empresário muito popular e amigo das coisas boas da vida — proporcionou-lhe uma casa feita a pensar na festa. Grande, muito grande, com divisões que nunca mais acabavam, e um rés-do-chão, todo ele, destinado ao convívio. 
Tinha um bar — bar mesmo, numa sala destinada para o efeito, e não um simples arremedo encostado a uma parede — e um enorme salão de dança que fazia inveja a muitas discotecas da altura. 
Claro que os 20 mânfios aproveitaram aquelas condições únicas: compraram um sistema de luzes daquelas que se usavam nos locais públicos licenciados para o efeito e fizeram concorrência desleal a eles.
Resultado, na altura das mais célebres festas organizadas por particulares (nós mesmos) da geração de que fazíamos parte, a polícia era chamada à casa da Dona Adelina pelas discotecas da região, mas a conclusão da vistoria era sempre a mesma: aquela era a habitação do dono da empresa de transportes de passageiros que os agentes utilizavam gratuitamente para se deslocarem às suas habitações, além de que os filhos do governador civil, chefe hierárquico máximo deles, também faziam parte do grupo dos 20.  
Não lhes restava outra coisa que velarem pela segurança das festas, exactamente ao contrário do pretendido pelos empresários da noite. 
E a Dona Adelina Painhas todo o tempo acordada a velar na sombra por aquilo. Uma vez estava eu “cansado”, eram para aí sete da manhã, e deitei-me no quarto naquele dia vazio da criada, que ficava perto do bar. A senhora de excepção que o tempo levou há dias veio ver o que se passava comigo, e é nessa altura que o meu irmão diz uma das frases mais célebres da vida dos 20: “Nunca pensei ver um Barros e Barros nessas condições!”
É em tudo isto que penso enquanto faço a viagem para ir ao funeral em Viana. Estive na cerimónia do adeus talvez uma hora e retomei o caminho de volta logo depois. 
Mas enquanto lá estive confirmei o que sempre soube. Que os 20 estão bem mais gordos e velhos, que têm filhos e, imaginem, mulheres (algumas bem chatas) a acompanhá-los e que as festas acabaram. 
Resta a casa grande. Ou melhor, restava. Com a morte da mãe dos meus amigos desapareceu a alma daquela casa.  
E sem um sítio comum, as famílias e os amigos acabam. Podem encontrar-se esporadicamente mas não é a mesma coisa. Nós somos de um lugar. De um espaço que em certos momentos se torna uma autêntica epifania. 
Naquele funeral senti que tinha terminado um ciclo. O da minha adolescência. Resta-me a partir de agora ser adulto. 
E velar um dia, eu e a polícia, pelas festas dos meus filhos. 
Até sempre, juventude minha. Até sempre, Dona Adelina Painhas.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Noite de Carnaval


Que eu não gosto de dançar!? Mas quem disse uma coisa assim...? Não há quem não goste. Pelo menos de ver. E de ouvir. De se sentir estonteado pela noite. São as luzes ou então a lua que nos fazem cambalear. Ou será que é a beleza daquela e daquela mulher? 
Não sei nem importa. O que interessa é dançar. Com o corpo, com o pensamento ou simplesmente com os olhos. 
Logo à noite vou tentar dançar. Com a Isabel que sempre quis e nunca tive não sei porquê. Se ela aceitar vou trazê-la mão na mão para dançar o tango, a minha especialidade. Gostava que fosse. Logo eu, nascido e criado no Monte Estoril, toda a vida habituada às noites de tango, de perfume e de Absolut Citron.
Com as mulheres tão maquilhadas que não são elas. Os lábios pintados com o encarnado que é mentira em quem o usa. E a fala afectada. 
Todas menos a Isabel. Por isso é que gosto dela. O seu corpo não precisa de ser vestido nem os lábios retocados. Tudo o que se lhe acrescente torna-se supérfluo. Ela é verdade e noite. Dos seus olhos nasce a lua. E as luzes da festa. 
Logo vou tentar dançar. A Isabel colada a mim, eu a pegar-lhe na perna que me envolve, o corpo dela a adivinhar-se centímetro por centímetro. 
Os seios dela provocam-me, o tango dá-me a conhecer o tamanho deles, a forma, os dois entumecidos. Os corpos, o meu e o dela ouvem a música e procuram-se no triângulo do Monte Estoril. 
Logo à noite vou tentar dançar o tango com a Isabel. Ou então rezar com ela. À noite, virados para o céu escuro da madrugada. O tango ou a reza vão dar ao mesmo. Ambos fazem-nos galgar horizontes. À procura de nós mesmos.
Seja o que Deus quiser.