sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O tempo sem retorno

 

Há dias fui ao funeral da mãe de uns amigos. Viajei 300 quilómetros para me reencontrar com um tempo da minha vida. O da adolescência. Éramos cerca de 20 rapazes que estávamos dia e noite juntos numa casa. Que pertencia à senhora que agora morreu e ao marido também já levado pelo fim do caminho.  
O quanto aquela mulher de excepção aturou dos tais 20 seres cheios de sangue na guelra! Maratonas de jogos de King que duravam vinte e quatro horas, noites sucessivas de conversa sem destino (destiladas com a ajuda de litros de álcool), os primeiros corpos de mulher dançados à razão de três bailes por semana, entre tantos outros momentos que nos fizeram bem e mal. Como não podia deixar de ser tratando-se da vida a ser experimentada por adolescentes. 
A importância da Dona Adelina Painhas em todo este ritual muito demorado de passagem para o tempo adulto foi crucial.  
Ela geria aquela casa. Discreta, mal se via mas controlava tudo dentro do possível. A vida dos filhos, da família toda e daqueles 20 jovens.  
Ainda por cima, como se tratasse de uma partida do destino, à senhora que nunca saía do lar-mater (apenas via as ruas por detrás dos vidros do carro sempre que ia ao cabeleireiro), o marido — um empresário muito popular e amigo das coisas boas da vida — proporcionou-lhe uma casa feita a pensar na festa. Grande, muito grande, com divisões que nunca mais acabavam, e um rés-do-chão, todo ele, destinado ao convívio. 
Tinha um bar — bar mesmo, numa sala destinada para o efeito, e não um simples arremedo encostado a uma parede — e um enorme salão de dança que fazia inveja a muitas discotecas da altura. 
Claro que os 20 mânfios aproveitaram aquelas condições únicas: compraram um sistema de luzes daquelas que se usavam nos locais públicos licenciados para o efeito e fizeram concorrência desleal a eles.
Resultado, na altura das mais célebres festas organizadas por particulares (nós mesmos) da geração de que fazíamos parte, a polícia era chamada à casa da Dona Adelina pelas discotecas da região, mas a conclusão da vistoria era sempre a mesma: aquela era a habitação do dono da empresa de transportes de passageiros que os agentes utilizavam gratuitamente para se deslocarem às suas habitações, além de que os filhos do governador civil, chefe hierárquico máximo deles, também faziam parte do grupo dos 20.  
Não lhes restava outra coisa que velarem pela segurança das festas, exactamente ao contrário do pretendido pelos empresários da noite. 
E a Dona Adelina Painhas todo o tempo acordada a velar na sombra por aquilo. Uma vez estava eu “cansado”, eram para aí sete da manhã, e deitei-me no quarto naquele dia vazio da criada, que ficava perto do bar. A senhora de excepção que o tempo levou há dias veio ver o que se passava comigo, e é nessa altura que o meu irmão diz uma das frases mais célebres da vida dos 20: “Nunca pensei ver um Barros e Barros nessas condições!”
É em tudo isto que penso enquanto faço a viagem para ir ao funeral em Viana. Estive na cerimónia do adeus talvez uma hora e retomei o caminho de volta logo depois. 
Mas enquanto lá estive confirmei o que sempre soube. Que os 20 estão bem mais gordos e velhos, que têm filhos e, imaginem, mulheres (algumas bem chatas) a acompanhá-los e que as festas acabaram. 
Resta a casa grande. Ou melhor, restava. Com a morte da mãe dos meus amigos desapareceu a alma daquela casa.  
E sem um sítio comum, as famílias e os amigos acabam. Podem encontrar-se esporadicamente mas não é a mesma coisa. Nós somos de um lugar. De um espaço que em certos momentos se torna uma autêntica epifania. 
Naquele funeral senti que tinha terminado um ciclo. O da minha adolescência. Resta-me a partir de agora ser adulto. 
E velar um dia, eu e a polícia, pelas festas dos meus filhos. 
Até sempre, juventude minha. Até sempre, Dona Adelina Painhas.

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