sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

COMUNICADO

Venho por este meio informar as clientes do Sr. Doutor que na próxima semana não poderão usufruir do contacto humano com aquele santo homem.  
Do facto pede-se desculpa mas o Sr. Doutor soube hoje que foi infectado pelo Belzebu, razão pela qual teve de adiar todos os compromissos de agenda. 
Aproveito para anunciar o pequeno aumento de 32 euros no preço das consultas a partir do dia 3 de Janeiro. 
Maria de Lurdes Fonseca

domingo, 26 de dezembro de 2021

Só tu me fazes grande


Só me sento quando sentares também. Não quero estar só com o mundo todo como interlocutor. A paisagem é extensa a ponto de me apoucar. Sinto-me um ser dispensável, igual a tantos outros perante um horizonte sem fim. As tuas mãos nas minhas costumam acalmar-me e dizerem que não sou tão insignificante assim. Que tenho dedos de pianista e olhos de quem leu os clássicos a eito. E eu então sou capaz de beijar-te e afirmar perante o mundo que sou maior que eu mesmo. Com uma força que me deixa espantado. A ponto de te fazer outro filho ou mesmo dizer que és boa pessoa. E de que ninguém tem direito a magoar-te.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Noite de Natal

Cheguei. Tarde como sempre. Os poucos transeuntes que ainda encontrei disseram-me ser hoje noite de Natal. Grande surpresa a minha: não tinha dado conta da data festiva. Vou tentar ser feliz nem que seja a despropósito. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

O belo na arte


O belo pode ser traduzido de milhentas formas. Através da palavra escrita, da pauta de música, da aguarela ou da fotografia, para só citar algumas possibilidades. Significa isto que o mesmo conceito ou sentimento manifestam-se de modo muito próprio nas diferentes formas artísticas. A dor ou o riso são os mesmos, a técnica e os materiais a utilizar primam pela diversidade.
Ao contrário do que a aparência nos diz: pintar ou fotografar parecem ser caminhos interpretativos que não podem alguma vez confundir-se. E, no entanto, tanto na tela como na película fotográfica procura-se o mesmo – a exteriorização do que nos vai interpelando à procura de sentido.
“Ah, mas a fotografia só pode aspirar a materializar processos figurativos, ao contrário da pintura”, dirão muitos. Estão tão enganados. A fotografia de rua deu-nos sobejos exemplos de que o transcendente pode ser captado pela lente de uma Leica. Que o diga Cartier-Bresson.
Ao mesmo tempo que o pintor pode não ser capaz de ultrapassar a mera reprodução de um objecto, incapaz, por isso, de sublimá-lo ao nível de uma dimensão absolutamente outra, captando a sua essência, que é aquilo que aproxima o resultado artístico do patamar de qualidade pretendido.
E nisto reside o segredo da boa produção pictórica ou literária ou outra: a tentativa da materialização possível do conceito de belo, por exemplo. Aliás, é neste plano de interpretação de uma ideia que muitos soçobram, esquecendo que toda a realidade resulta da confluência da objectividade e subjectividade.
A Gala pintada de costas pelo seu marido Dali é personificação do belo porque participa daquilo que só as realidades que não se inscrevem na vulgaridade do dia-a-dia são capazes de possuir. Da mesma forma, a apreciação da beleza depende também da educação, da vida e dos gostos daí decorrentes que nos caracterizam. Só desta forma seremos capazes de entender que a reprodução do corpo da mulher-amante daquele pintor catalão não é tão somente arte figurativa – é muito mais do que isso.
Talvez isto ajude a explicar porque algumas obras têm apreciações aproximadamente consensuais.

(De referir que a imagem que acompanha este texto é a fotografia de uma modelo chamada Francesca e que normalmente vive entre Ibiza e a Toscana)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Ao Francisco e à Marília


Vi-os outro dia numa fotografia de uma rede social. Lá estavam os dois, cúmplices como sempre, boas pessoas à espera que os outros o sejam também. Olhei para as caras deles e senti os olhos humedecidos pela emoção. 
Trinta anos nos separam em termos de convivência. Por essa altura cheguei à vila alentejana onde o casal vive, professor acabado de estagiar, novo portanto, vindo do Norte. Tinha sido colocado a dar aulas de Filosofia e Psicologia na escola secundária local. 
Não tinha casa onde ficar a viver, como é óbvio. A única sugestão que recebi era a de um quarto, propriedade de um cangalheiro, que fazia os seus serviços no andar de baixo. 
Ora eu e a morte não temos uma relação muito fácil. Não aceitei e foi o tal casal que me salvou. Um primeiro andar só para mim e o rés-do-chão ocupado pela família alentejana rica que, de certa forma, se tornou também minha.
O resto da história um dia contá-la-ei, quando a extensão dos textos não afugentar ninguém.  
Fica só este pormenor para suscitar a curiosidade do leitor: nas primeiras semanas, era habitual o telefone tocar madrugada fora na casa dos senhorios, com a voz de um indivíduo que dizia ser agente da judiciária a informá-los de que tinham albergado na mansão um indivíduo muito perigoso, nem podiam calcular quanto... 
Uns meses depois, o casal de proprietários sondou-me para ser padrinho de um dos filhos, tal era a amizade que havíamos conquistado dia a dia, conversa a conversa, chá príncipe a chá príncipe.  
Tenho muitas saudades vossas.