domingo, 29 de dezembro de 2019

Balanço de final de ano


























Mais um ano a chegar ao fim e eu sozinha. Tentei e nada resultou: inscrevi-me nas danças de salão, no curso de alemão, no Instagram... e o lugar ao lado do meu deserto no sofá lá de casa.  
Nada disto tem a ver com solidão. A circunstância de estar só nunca me assustou; pelo contrário, muitas das vezes prefiro ver as pessoas ao longe e imaginá-las no seu viver abnegado de gente simples. Nessas alturas crio-lhes identidade, invento-lhes enredos literários. Mas depois percebo que as histórias dos outros são meros paliativos da minha.  
Sempre quis ter uma família — um homem e filhos. Desejos de gente mediana que os meus pais souberam moldar em mim. 
Estive quase a iniciá-la. Mas depois aconteceu a desgraça que me faz estar tal como me sinto hoje. O único homem de quem verdadeiramente gostei — só o soube depois — foi embora para sempre por culpa minha. 
De então para cá, quando me apetecia ter alguém na cama, trazia mulheres e homens que há algum tempo havia escolhido na noite ou no escritório. Mas sabendo de antemão que nunca passariam de meros fogachos na penumbra em que se havia transformado a vida. 
No Verão deste ano resolvi consultar um conselheiro filosófico prestigiado. 
Disse-me que estava na altura certa de procurar o homem da minha vida. Perguntei-lhe onde achava que o deveria procurar. Olhou para mim e respondeu de forma inequívoca: Assembleia da República. Fiz-lhe ver que uma mulher branca gaga como eu poderia ter dificuldade num meio como aquele. “Qual quê? Lá todos gaguejam de uma forma ou outra”.
E aqui estou eu à espera de 2020, cheia de esperança no tempo que aí vem. Vou iniciar, na segunda semana de Janeiro, as lides parlamentares com uma intervenção sobre “A Política e a Procura do Homem Novo”. 
Uma coisa é certa: se não o encontrar nos corredores ou no restaurante da assembleia, volto a procurá-lo junto do tal conselheiro filosófico. Palavra de mulher apaixonada.

sábado, 26 de outubro de 2019

Aniversário do Henrique de Barros


Está na Amazónia e na galáxia Redshift. Entre vegetação luxuriante e terra seca. Na crista de uma onda na Praia Norte e no remanso da água do banho. 
E junto com ele, na sua página do Instagram, a Vodka. A altiva gata é simpática com todos de quando em vez. Não muitas porque cansa. Mas com o Henrique, ele pode fazer dela boneca de borracha que a bicha não reclama. Mais: beija-o o e lambe-lhe a cara o tempo todo. 
É um sedutor o rapaz. Ele sabe disso. Mas ultimamente vem aprendendo que não podemos agradar o mundo todo. Fazer com que a Marta goste de nós significa que o Artur vai detestar-nos; que ou se seduz a vida lá fora ou a escola onde estudamos — uma e outra, ao mesmo tempo, é difícil.  
E por vezes o Henrique sofre com isso. A liberdade de sermos quem queremos ser é aparente. Alguém controla coisas que deveriam ser só nossas. 
A sua inteligência está agora a avisá-lo desta realidade. 
Também só tem onze anos. Onze?! Não, não... tem doze anos, feitos hoje bem cedo, logo pela manhãzinha.  
Está quase um homem o Henrique. E sonhador e turista e actor. E eu, enquanto pai, cheio de medo — que sina! —, o rapaz tem os mesmos atributos os mesmos pecados de mim. 
Por isso é que gosto tanto dele e, ao mesmo tempo, olho-o com receio de tudo. 
Mas ele há-de ser feliz. Hei-de ter tempo e engenho para avisá-lo de todos os escolhos que vai ter de enfrentar.  
Parabéns Henrique. Não largues nunca a minha mão que só te quero feliz. O resto não interessa nada. 
Um beijo. 
O pai.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Aniversário da Maria Leonor de Barros


O amor de um pai por um filho é de um tamanho sem fim. Não se pode definir, expressar através de palavras. Ultrapassa a dimensão de racionalidade exigida pela lógica. É vida que se anula em favor de outra. 
Gosto muito da Leonor. Olho para ela e sinto-me ao espelho. Sei tudo o que ela pensa e sente. Como se fosse eu outra vez. 
Faz hoje 14 anos, a Leonor. Em qualidade de raciocínio parece ter já chegado à maioridade. É absolutamente brilhante em tudo o que faz. Aluna do quadro de mérito sem nunca a ter visto estudar. Toca violino, canta, tem aulas no conservatório e no liceu sem se queixar do seu horário transcendente em relação às leis da razão.  
É muito melhor do que eu. Vai ser aquilo que quiser ser. Feliz, assim espero.  
Passei as últimas horas à procura de uma fotografia dela. Sem sucesso. Vi-me obrigado a buscar o rosto desfocado da Leonor em recordações de um jantar de amigos. 
Sem que ela suspeite de tal afronta. Também eu não gosto de estar em fotografias. 
Somos parecidos, Nonô. Por isso é que me sinto tão emocionado quando fazes anos. 
Não consigo escrever mais nada. Se calhar nem devia ter começado este arremedo de palavras. Mas se não o fizesse não estava a cumprir a tradição que impus a mim mesmo há muito tempo. 
Sê feliz, minha querida filha. Se o fores — e só se o fores — também eu serei. Meu amor.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A mentira dos homens


Mas que mentira te disseram! Não deves confiar nos homens que choram no teu regaço a afiançarem que sofrem por ti. Só querem saber deles. Nasceram e vão morrer narcisistas. No momento em que lhes disseres que estão perdoados começam logo a pensar na tua melhor amiga ao sol. Dá-lhes um Kleenex e deixa-os chorar à vontade. Só lhes faz bem sentirem a escorrer pela face as impurezas todas.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Diogo Freitas do Amaral


A vida é preenchida por momentos-chave, situações marcantes e por pessoas. Muitas pessoas. Umas que conhecemos, outras que nos habituamos a ver, a ler ou a desejar. Marcando o tempo ou os tempos. Fazendo com que o ano de de 1989 seja o ano de Tiananmen, do muro de Berlim, da Teresa e da Amélia, do Marcelo a mergulhar no Tejo.
 
Nessa galeria de homens e mulheres que marcaram o meu cenário de vida está Freitas do Amaral. Não que eu fosse seu correligionário político, mas porque ao lado de Soares, Sá Carneiro e Cunhal fundou um novo tempo em Portugal. 
No dia em que ele morre, vem-me à memória a ocasião em que o vi, a ele à mulher, dentro do Volvo cinzento a ser embalado pela turbe enfurecida a gritar “fascista”. Na cidade de Viana, era eu uma criança que adorava a contenda política. 
E Freitas do Amaral imperturbável. Tinha ele 33 anos e já era professor prestigiado de Direito Administrativo. 
Esta história que presenciei associo-a à retirada da sua fotografia da sede do partido que fundou. Por decisão de uns meninos mimados que nasceram com as coisas todas à disposição. 
De então para cá, a qualidade da formação moral e académica dos políticos nacionais tem vindo a degradar-se. Estadistas a sério não apareceram mais. Culturalmente, então, são um deserto de tudo que represente uma visão esclarecida do futuro. Não sendo capazes de se adiantarem ao tempo. Reagindo apenas ao acessório. 
E o sobretudo verde que não voltará. Nem a plasticidade do raciocínio de Soares. Nem a perseverança e a coragem de Cunhal. Ou o poder de sedução de um povo pelo atormentado Sá Carneiro. 
Descanse em paz, Senhor Professor. 

Foto Revista Maria

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A imagem de mim


Não, não é verdade: aqueles que me acham pretensioso na escolha que faço dos outros estão perfeitamente enganados. E isto é ainda mais verdade se o critério depender de gostarem ou não de mim. Desde sempre relativizei a forma como me olham; ou como falam de mim. Nem sei bem porquê. Até porque em termos racionais há apenas duas justificações para tanto, sem que ambas se me apliquem de modo integral: uma refere-se à alta conta em que alguém se tem — o que não é por certo o meu caso; a outra tem a ver com a sabedoria que a maturidade nos traz, a de ser capaz de relativizar os defeitos de tudo o que nos envolve, na certeza de que nada é perfeito. 

Talvez que este juízo, reconheço-o, tenha a ver comigo. Mas desde sempre. Jovem ainda já o descobria na fala dos que comigo repartiam os lugares da esplanada. E sorria de superioridade avisada perante a fraqueza dos outros. Coitados de serem assim. 

Claro que esta minha contemporização com a fraqueza dos demais tem limites de amplitude. Quando a vontade de ser melhor do que efectivamente se é atinge o plano da maldade, ferindo-me naquilo que o mundo todo sabe ser inexpugnável em mim, bem... aí... é o oceano atlântico a nado a separar-nos. Para nunca mais. 

O cinismo que me caracteriza toma então conta do palco. 

Mas nada disto tem a ver com os meus amigos leitores. Muito menos com as mulheres, claro.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Aniversário da Dona Lurdinhas


A Dona Lurdinhas faz hoje anos. É virgem, portanto. Mulher boa, angelical mesmo, dedicou os seus 42 anos de vida ao trabalho. Talvez para esquecer o desgosto que um amor adolescente lhe provocou. Sete meses de internamento, duas semanas de coma, uma perna mais curta que outra para toda a vida do maldito rapaz, comprovam a intensidade do mal que a postergou. De então para cá, a serenidade. E a simpatia que os meus consultantes lhe reconhecem. Em casa ouve só Chopin, Liszt, Debussy, Frank Zappa, Beethoven. No gabinete, uma devoção inultrapassável a este vosso amigo. “Não há ninguém como o Dr. Francisco “, diz ela repetidas vezes aos clientes. Deus guarde por muitos anos a Dona Lurdinhas. Se todas as mulheres fossem tão boas quanto ela...

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A casa de Pedro Homem de Melo


Pedro Homem de Melo. Ainda o conheci, já lá vão muitos anos. Fato completo de cor branca quando passeava em dias de festa pelas ruas de Viana, de cor cinzenta com risca branca quando fazia os programas na televisão. Cigarro entre os dedos, a lançar uma coluna de fumo embora sem nunca ser fumado. O cabelo impecável, esforçadamente penteado, apresentação cuidada — e conseguida. Ele sabia do impacto que causava. Falava com uma educação esmerada, beijava a mão das senhoras. Era um aristocrata por via do nascimento e da forma de ser. 
Esse cuidado com as pequenas coisas transferia-o para a poesia. Era um grande poeta. Falava do mar com a mesma exigência literária de quando falava das pessoas. Do riacho vizinho à sua Quinta das Cabanas ou do rapaz da boina verde. Do dançarino do vira Manuel Enes Pereira ou das tílias. Cada palavra pesada, analisada de todos os lados para servir como nenhuma outra os intentos do verso. 
Parece fácil para quem não sabe escrever. Não é uma tarefa qualquer. Exige doação total do poeta ou do escritor. 
Talvez por isso muita gente da época não o percebeu. Homem de Melo era muito mais do que parecia quando buscava, sentado ao sol entre as rochas da praia de Afife, a verdade de si que lhe escapava. 
O seu funeral é a prova terrena disto mesmo — que ninguém quer lembrar. Na hora em que Pedro Homem de Melo desceu à terra poucos lá estavam: para além da Amália, apenas alguns admiradores de Viana, alguns intelectuais do Porto e alguns familiares. Muito poucos, todos. 
De Afife, onde viveu com alguma intensidade uma parte de si e ficou sepultado, quase ninguém. Para o futuro ficaram as ruínas do corpo, da vida, da praia, dos homens, da terra do vira e da gota que tanto amou.  
Do senhor doutor resta hoje uma saudade distante. Da sua belíssima casa, a Quinta das Cabanas, sobrevive a estrutura da capela e da habitação, o célebre ribeiro lá ao fundo, as discussões ouvidas longe dos actuais donos e o desagrado que nem tentam esconder pelo chegada de mais interessados na saga de conhecer os muros e as terras vizinhas da propriedade. 
“Existo, sem futuro e sem passado.
Por toda a sonolência que me abriga...
Obrigado!",  escreveu Pedro Homem de Melo. 
Ainda bem que o poeta percebeu em vida o destino de todos os poetas. 
Em Afife, ele e a mulher descansam em silêncio da festa e do mar, só entrecortado pelas vezes em que decidem “Havemos de ir a Viana”.

domingo, 11 de agosto de 2019

Manhã na esplanada


A vida a sério faz-se de coisas simples, banais mesmo. É o conjunto delas que decide quem somos e o que fizemos ao longo do tempo. Sem que nos demos conta disso. 
Senão vejam aquilo que se passou comigo e que conto de seguida: estava eu sentado na esplanada a pensar em si, meu caro leitor, quando uma miúda de uns cinco anos de idade veio ter comigo. Tinha medo de um cão pequeno que estava na mesa ao lado, agarrou-se a mim abraçando-me, procurei a mãe com o olhar, estava ela a conversar descontraída com uma colega no fundo da esplanada. 
Não conhecia a miúda nem a mãe. Fiz ver à criança que o cão não fazia mal, estava sentado ao lado dos donos, contente por desfrutar daquela manhã de sol. 
Foi então que a garota, agarrada ao meu braço, disse de forma lenta para nenhuma palavra escapar: “Tu cheiras igual ao meu pai”. 
Percebem agora quando digo que a vida é só isto? O resto são algoritmos inventados por imbecis armados em pessoas inteligentes.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A América é só de alguns...


— Idiota. E se te metesses com os do teu tamanho? Deixavas-nos em paz, a mim e à minha mãe, a fronteira é já ali, a casa a escola os meninos... custou tanto chegarmos aqui. Ai se o meu pai fosse vivo, ias ver... Mas quando eu crescer vou lutar contigo, aí é melhor fugires... ou então quando eu for presidente dos americanos!

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Cinema ao ar livre


Ontem à noite fui ao cinema. Ao ar livre. Num espaço desenhado a pensar numa esplanada, mas que pode ser adaptado a muitas outras coisas. Palestras, exposições, desfiles por exemplo. Ou então à projecção de filmes. 

E é aqui que entra a diferença do traço transformado em arquitectura. Da célebre escola do Porto. De Eduardo Souto de Moura, neste caso. 

Fazendo de um quintal de uma casa um sítio lindo de estar, de ver, de namorar, de pensar. 

E de assistir na tela à Natalie Portman a vergar-se em respeitosa homenagem ao escritor israelita Amos Oz. 

Num filme de grande intensidade dramática. Envolvido pelas linhas de um traço só de Souto Moura. Soberbo. Tudo. 

De tal forma que ao olhar-me na tela houve em mim um arremedo que só pode ser cómico de uma epifania: a de só agora estar preparado em termos de vida para ser escritor. 

Demasiado tarde. Muito tarde. Mas não para ir à discoteca ver dançar a noite toda outra vez no éter do cinema. Pensei eu ao mesmo tempo que me dirigia rua acima ao sítio onde as mulheres dançam.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Médica bonita


Eu sei que por muitos sou abominado pela importância que dou à beleza, mas é mais forte do que eu. Se se comparar o sentimento estético que me suscita um jardim, uma montanha, um automóvel, uma escultura, uma igreja, com aquela outra realidade que é uma mulher nas ruas de Florença, escusado será dizer que prefiro o ser que desfila determinado, com um vestido de uma cor que depressa se extingue na memória, na cidade que é cinema vivo. 
Por várias vezes, às médicas bonitas que atendem no consultório sujeitos fragilizados pela doença, não resisto em perguntar-lhes se o rosto de anjo que as distingue não atrapalha o exercício profissional. 
Nunca me souberam verdadeiramente responder. 
A rapariga que posou para a máquina fotográfica na tarde de Sábado passado é também médica. Sim, a da imagem junta. É médica e psiquiatra. Portuguesa de gema. 
Olho a fotografia e vem-me à ideia que o doente que a consultar das duas uma: ou fica curado de vez na certeza de que a vida é bela ou, então, cai fulminado pela clarividência de que Deus o quis castigar a vida toda e que está ali à sua frente a prova da fealdade de tudo o que sempre o rodeou. 
Coitado dele. E de mim.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A sociedade portuguesa actual e a da idade média

Acabo de chegar ao meu segundo escritório, o da esplanada, e com que é que deparo? Com uma jovem eslava solitária por culpa de um feriado nacional que não compreende. Os ouvidos a acompanharem Liszt nas suas deambulações pelo mundo dos sons, os olhos fixos no computador (pelo menos até eu aparecer). Está a escrever a tese de doutoramento com o título “A Sociedade Portuguesa no Século XXI - Análise sobre a permanência da Idade Média no tempo actual”. Pela minha cara viu que não gostei muito do tema. Disse-me que que como homem inteligente (como é que ela percebeu tão rapidamente?!) deveria pensar seriamente no assunto. “A Madonna tem razão”, atirou-me em jeito de provocação. Por essa altura já eu pensava como fazer para esganar uma rapariga bielo-russa. Mas depois lembrei-me de muitas coisas: dos servos da gleba, dos senhores feudais, da quase impossibilidade de mobilidade social, do engajamento a um só perfil cultural, dos círculos de poder de admissão exclusiva, e lembrei-me da sociedade portuguesa contemporânea. De Lisboa e de Pampilhosa da Serra, de Marcelo e da Cristas, do Carlos César e do André Silva, da SIC e do Banco de Portugal, da Santa Casa da Misericórdia e do Banco Alimentar Contra a Fome, do aumento do ordenado dos juizes e da crise dos professores — e milagrosamente a rapariga loura tornou-se cada vez cada vez mais interessante. 
Perguntei-lhe se sabia como era o namoro na idade das trevas, ela disse-me que só estava em Portugal há duas semanas. 
Levei-a a uma festa de BDSM e bondage. 

terça-feira, 4 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís (II)


Agora que Agustina está a regressar às origens, não posso deixar de contar uma história que ela partilhou entre amigos (pode ser que esclareça alguma coisa da sua personalidade). 
Um dia a escritora deslocou-se, no mais esforçado anonimato, à casa de uma candidata a empregada doméstica da sua residência no Porto. Para grande surpresa da Agustina em cima da mesa da sala de jantar estava o livro Sibila. Perguntou à rapariga:”Então, está a gostar de ler?” A resposta não podia ser mais franca: “Ui! Nem me fale: é uma seca monumental. Não sei mais o que hei-de fazer com o livro”. 
A escritora veio então a saber que a candidata estava a estudá-lo na escola no horário nocturno — de dia criada, à noite aluna do secundário. 
Escusado será dizer, para quem conhece a autora de Sibila, que a contratou para trabalhar lá em casa.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís (I)


Era uma mulher sem tempo, corajosa, frontal, sempre com a ironia pronta a desferir o golpe fatal na soberba dos outros. Grande, muito grande mulher e escritora. Capaz de publicar um anúncio no Primeiro de Janeiro para arranjar marido. Ou de escolher a direita para dela fazer bandeira política numa época em que era obrigatório ser de esquerda. E depois a escrita. Pensada palavra por palavra até ser pesada, acariciada, ouvida a tarde inteira na casa da família em Massarelos. 
É a primeira grande escritora de romance a entrar na história maior da literatura portuguesa. Fez o mundo como quis. Teimosa e doce ao mesmo tempo. Mas disso só sabe com propriedade aquele que foi o amor de toda a vida: o seu marido Alberto Oliveira Luís.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Os pavões e os motoristas de S. Bento


E mais coisas me contou a Maria Júlia, funcionária do parlamento. Uma delas tem a ver com a relação dos motoristas da Assembleia da República e os pavões do Palacete de S. Bento. Duas espécies vivas tramadas sendo que a das aves manifesta-se normalmente como  mais simpática e mais bem vestida. 
Mas para o caso em apreço, o que importa saber é que os motoristas têm de manter a todo o momento os carros oficiais a brilhar. Lavados de forma a ver-se o rosto de alguém na carroceria. A serem uns espelhos andantes, se possível. 
Ora os pavões, que amiúde passeiam entre a casa do primeiro-ministro e a Assembleia da República, circulam por entre os carros vistosos de tanto brilhar, olham para eles, e descobrem a sua imagem na carroceria. Como se estivesse a provocá-los. Claro que a resposta não demora: julgando tratar-se de bichos adversários atiram-se a eles e riscam os carros do estado.  
Uma desgraça. Ainda esta semana riscaram um de tal forma que teve de voltar à marca para ser pintado de novo. 
Um dia destes vou fazer o mesmo à Maria Júlia, pensei eu e ela. Mas antes tenho de me inspirar nos rituais de sedução dos pavões de S. Bento.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Gato parlamentar


Nos jardins da Assembleia da República vivem vários gatos. Sete, mais exactamente, tantos quantos os quartos destinados para eles no hotel gatídeo construído no espaço relvado do Palácio de São Bento. Toda a gente que ali trabalha ou representa o esforçado povo português gosta dos bichos. Todos menos o Carlos Abreu Amorim.

Na imagem a minha grande amiga Maria Júlia acaricia o pelo do animal mostrando aquilo que seria capaz de fazer ao fotógrafo.

sábado, 18 de maio de 2019

Benfica contra o Porto


“Às vezes não sei que pensar: eu sozinha aqui e o mundo lá fora a rir e a divertir-se. E tudo por causa do Benfica. O Artur nas bancadas junto aos amigos e a esposa largada ao tédio de um Sábado à tarde na casa de sempre. O jogador a avançar decidido para o golo, a assistência a aplaudir em êxtase, a cor encarnada a cobrir de glória o estádio. Bem me dizia a minha mãe: ‘Filha, não queiras um homem que ande atrás da bola o tempo todo — é vulgar e não te vai dar nunca uma casa fora do Montijo.’ O malandro do Artur enganou-me bem: não apreciava futebol, não tinha clube e depois foi o que se viu. E ainda por cima o Benfica. Se ainda fosse do Sporting, uns senhores aperaltados, com bons empregos, ainda se suportava.
Agora eu sei, a vida pregou-me muitas rasteiras. Não fosse o Benjamim a mostrar-me o lado bom das coisas e nada em mim faria sentido. Mesmo gostando de futebol e sendo fanático do Porto ele sabe distinguir as coisas: o amor de uma mulher é mais importante que a bola, diz muitas vezes. 
Por falar nisso, a que horas é o jogo? Deixa ver: às seis e meia — já não falta muito! O Benjamim mostrou vontade de conhecer o sítio onde moro e beber vinho branco numa lugar da casa que eu escolhesse. 
Isto pelo menos até o árbitro apitar para o final do jogo.”

segunda-feira, 6 de maio de 2019

O professor


Eu sei que não vão acreditar, mas eu vi esta manhã — cabeça apontada ao chão, óculos providenciais, pasta na mão — um professor. 
Senti-me a tremer quando passei por ele. Fez-me lembrar a sensação que experimentei há tempos quando vi sete cadáveres esquartejados em plena estrada, o fumo a sair das entranhas, as cabeças separadas dos corpos. 
Juro-vos que era um professor aquele homem pelo qual passei esta manhã.

Na foto, o professor Jürgen Habermas

quarta-feira, 1 de maio de 2019

1º de Maio


Janela ou porta que se preze está hoje engalanada com um ramo de giestas ou com uma coroa de flores. Os portugueses actuais aprenderam com os romanos a esconjurar desta forma os seres maléficos e a festejar o recomeço do Verão e da vida.
Nisto sou igual a todos os outros: ontem à noite disse à Dona Lurdinhas para decorar com as tradicionais Maias a minha casa. Não que acredite em dimensões esotéricos do mal, mas a precaução nunca fez mal a ninguém. 
Ainda por cima não dá trabalho nenhum...
Estamos, por isso, todos mais seguros a partir de hoje. Escusa o Doutor Centeno de pensar em mim ou no leitor. Quer dizer, “penso eu de que”... o leitor pendurou a Maia na sua porta, não é verdade?
Se não o fez também não entre em desespero. Aqueles que me lêem são normalmente pessoas confiantes em si, com um grau de auto-estima francamente positivo. Deve ser este o seu caso. 
Afinal, que mal poderá chegar até si através da porta ou das janelas da sua casa?
Raramente olha para a rua cinzenta onde mora. Os vizinhos já os conhece de ginjeira. Só se for a campainha da porta a tocar e a anunciar os fiscais dos impostos, as testemunhas de Jeová, o canalizador com a conta de 7 mil e duzentos euros para pagar, ou a Vanessa lá do escritório. 
Pelas janelas, então , o infortúnio nunca se mostra. A menos que o passarinho de penas amarelas invada a sala e largue as demasias fisiológicas no tapete de Portalegre comprado com muito suor por si. Ou então que o preservativo do Sr. Antunes da mercearia seja lançado desde o apartamento da D. Manuela para uma aterragem de emergência no passeio da rua — com passagem obrigatória pela janela do escritório onde a filha adolescente do leitor costuma estudar. 
Caso o mal seja mais grave, tenha a ver com a esquizofrenia do cônjuge ou com a zanga definitiva da sogra, por exemplo, então nessa altura será melhor recorrer aos serviços de alguém experiente em tirar o diabo do corpo da vítima de tanto mal. 
O meu consultório fica situado na Avenida de Roma, número 676, segundo esquerdo, em Lisboa. 
Não há ninguém igual ao autor destas linhas.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Desalmadamente Lena D'Água




Meu Deus, Nosso Senhor: não se faz uma coisa destas — a passagem do tempo deveria acontecer apenas com aqueles que têm pressa de se irem embora e não com aqueles que querem ficar. Que gostam do sol logo pela manhã e da voz da multidão a caminho do trabalho. 

Permanecendo, se possível, eternamente bonitos; ou então jovens; ou então saudáveis, o que vem a dar mais ou menos no mesmo. 

Mas o tempo é um carrasco difícil de moldar — faz estragos, mata devagarinho. 

Já escrevi diversas vezes sobre o tempo (e também acerca do que permanece para além da mudança).

Hoje vi fotografias antigas e outras actuais de uma das mulheres-sonho da minha juventude: a Lena D’Água. 

A cantora de Sempre que o Amor me Quiser era absolutamente linda. Filha de um pai e de uma mãe também eles belíssimos, a Lena não precisava de maquilhagem ou de roupas muito elaboradas. Ela era naturalmente desejo dos homens e de algumas mulheres. 

Infelizmente, tal como a muitos de nós, a vida foi-lhe madrasta. Por culpa dela e dos outros. 

Do tempo que percorreu na noite e na vertigem de si própria ficaram-lhe as marcas. Na carreira, no pensamento e no corpo. Do rosto luminoso e das pernas de boneca já pouco resta. Nos olhos e no riso, talvez. No resto, a Lena D’Água de hoje mais não é do que a longínqua imagem de uma cantora portuguesa de muito sucesso dos anos oitenta. 

A menos que consiga recomeçar. Como se fosse do zero. Esquecendo o bom e o mau de tudo o que ficou para trás, de forma a não ter de penosamente comparar-se com o que já foi. 

A oportunidade está aí: trinta anos depois vai editar um novo álbum com o nome Desalmadamente. Quando o ouvirmos vamos imaginá-lo cantado por alguém que não se distingue pelas pernas ou pela beleza do rosto, mas antes pelo percurso e pela consciência que só uma vida cheia permite. 

No dia 10 de Maio, quando desalmadamente for divulgado o disco, eu vou amar outra vez a Lena D’Água.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Tarde em Moledo


A cena presenciei-a mesmo a meu lado no Domingo passado. Eu e a Cuca finalmente esparramados ao sol, ninguém a aborrecer-nos. Ao fundo a vista linda de Moledo, a areia solidária a querer-nos felizes, o Forte no meio do mar a tomar conta de nós, o monte de Santa Tecla a mostrar-nos o caminho em direcção ao divino. Como se ele não estivesse ao nosso lados nas migalhas de rocha em que nos deitamos, e em tudo o resto a que chamamos natureza e que os homens ainda não souberam como estragar. 
A alguma distância de mim e da Cuca, um casal antigo no tempo mas igualmente feliz na cumplicidade de amor, sorria para nós como se pudéssemos compreender aquilo que ambos sentiam. Da mesma forma que eles nos adivinhavam, pareciam querer dizer. 
Até que chegou a desgraçada de uma víbora muito má travestida de mulher. Sentou-se perto do casal mais velho e devagar, muito devagar, começou a tirar cada uma das peças do seu vestuário escolhido de forma a fazer jus ao sol de Moledo. O soutien não constava do corpo da bruxa, mas dos seios redondos (da forma das minhas mãos), arrogantes de tão confiantes em si, não se tinha ela esquecido. 
Foi então que vi uma das cenas de amor mais bonitas dos últimos tempos: a mulher velha, preocupada com a interrupção do descanso do marido, tapou num ápice os olhos do companheiro com o pedaço de crochê que fazia desde que chegou à praia. 
Foi lindo. Cheguei mesmo a emocionar-me. Eu e a Cuca — que depressa aprendeu como se faz e pespegou à frente da minha imaginação a capa do seu último disco de vinil. 
Sorri contente de tanto amor. Um dia destes a bruxa má vai fazer-me a mesma coisa. Vocês vão ver.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Quando a coerência é um mal


Não fui eu o autor deste sublinhado fotográfico — esse bom gosto deve-se à Diana Duarte, jornalista da SIC. 
Mas gosto muito do que na página do livro está escrito. Não há nada mais aborrecido que alguém de uma só cara. Que é constante no vestir e no dizer. E na escrita. E no gosto pelas mulheres louras; ou então, sendo do género feminino, preferindo os homens das contas certas. 
Eu não sou assim. Hoje sou o homem do comboio, amanhã sou escritor por publicar. Isto de manhã e à tarde, porque à noite sou milionário que o deixei de ser por causa da guerra civil no Ruanda. 
A vida é cinema e os chatos são porteiros e vendem os bilhetes do espectáculo. Que, por sinal, nunca terá um fim. 

sábado, 13 de abril de 2019

Mulher para as caminhadas


Seis indivíduos de bata branca, 
estetoscópio ao pescoço, proferiram o veredicto: “Tem de andar meia hora por dia”. Era a quinquagésima sétima vez que o diziam, sem nunca eu ter conseguido cumprir a malfadada sentença. As ruas sempre as mesmas, o suor a querer desaguar nos olhos, a figura de parvo a tomar conta de mim. 
“Vai ter de arranjar companhia”, vaticinaram os lentes da faculdade de medicina. Companhia?Mas qual? Um homem de bigode e cheiro de pés, sempre a divagar sobre futebol?
Não, não... fiz algumas asneiras, mas não mereço tamanho castigo. Uma mulher? Para quê? Para andar?Mal empregada musa da minha vida.  E qual havia de ser?  A Dona Lurdinhas não quero,  já chega o gabinete mais os clientes. Tem de ser mais viçosa e inexperiente, o corpo a cheirar ao perfume das raparigas dos bailes de quando eu tinha quinze anos. 
Loura, sim, quase a parecer morena, olhos pretos que eu gosto muito das ruivas. Sorriso obediente sem ser submissa, que eu nunca quis mulheres dependentes do carro ou do meu filósofo preferido ou ainda do porta-moedas Gucci. 
O cabelo escorrido e sempre impecável, a pedir para ser cofiado pelos dedos deste novel atleta. Há só mais uma condição e esta irrecusável: A de não falar enquanto caminha. Nem que seja sobre a desvalorização do euro, do Brexit ou do mau-gosto do vestido da vizinha. A única coisa que pode dizer é “Ai Jesus” ou “Ai, meu senhor”. 
Vou pôr o anúncio no Correio da Tarde. 
A ver se desta vez começo a andar pelos jardins e ruas à beira-rio da minha cidade. 

sexta-feira, 29 de março de 2019

Tontos


Tontos. Não perceberam nada. Os professores a julgarem-se importantes na sociedade e no PS. Não sabem que o mundo mudou. Só conta quem produz lucro. Por isso é que a Maria de Lurdes Rodrigues fez com que eles passassem a ganhar menos, a seguir Passos Coelho ainda baixou mais o ordenado e ameaçou que os cortes seriam permanentes. E os professores a pensarem que deveriam fazer o sacrifício pelo país. Que totós. Ao actual governo bastou fazer de conta que iriam recuperar aquilo que as suas carreiras determinavam. Ao mesmo tempo que lhes entregava metade do vencimento que por lei deveriam estar a receber. Adeus, mestres-escola. A paixão pela educação só é possível em países ricos.

 

Foto Observador

Vá lá, organizem-se...


Há ministros que são pai e filha, marido e mulher, amigos e amigas do primeiro de todos, eu não nomeei nenhum deles, quem o fez o foi o presidente da marquise, o mesmo que é vizinho dos gestores do BPN, eu é que não andei a passar férias no sítio do Ricardo Espírito Santo, nem a minha Maria trabalhou na administração do BES, o que é que este está para aí a dizer?

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