domingo, 29 de março de 2020

A esplanada vazia


Exilarmo-nos em quarentena não é tarefa fácil. Mesmo que de início tenhamos a genuína vontade de estarmos sós. Mas essa determinação pessoal não pode nunca ser imposta. Traduzir em letra de lei a inutilidade das cadeiras da minha solitária esplanada é ferir a liberdade de acção. Mesmo que não fizesse tenção de me sentar nelas.
E isto porque a epidemia provocada pelo maldito vírus coincidiu com um tempo difícil da minha vida. Por isso é que não tenho escrito quase nada, limito-me a procurar nos despojos da memória algum texto que não me deixe mal.
Na doença do meu pai reside a razão principal deste estado de espírito. No dia da operação a que foi sujeito senti debaixo dos meus pés o terramoto de Lisboa, no coração um enfarte a caminho, e nos olhos uma tristeza sem fim.
Está neste momento em convalescença e o pior parece já ter passado. Mas estes meses reafirmaram a certeza de que o meu pai é ainda, passado este tempo todo, o esteio da estrutura de mim e do meu mundo. E que ainda não estou pronto a ser definitivamente pai.
O resto do sofrimento tem a ver com a quarentena ela mesma. Na altura em que alinhavo estas linhas, estou fechado em casa há 24 dias. A santa da Dona Lurdinhas ralha-me de hora a hora, às vezes chego a pensar que o braço levantado lá detrás das costas vai ter como destino alguma parte de mim, chama-me a atenção para a lista de consultantes que esperam para escutar o meu saber, a fortuna que estou a perder e coisas do género.
O problema é que já não sei se quero continuar com este tipo de vida, as aulas, mais as consultas, a paixão do jornalismo e a esplanada vazia por ordem do governo. Começo a sentir-me cansado de tudo.
E em casa, neste tempo de quarentena, a família não parece estar melhor. Nos primeiros dias era um autêntico milagre, os meninos entusiasmados a meu lado a escolherem filmes para ver, a jogar ao Monopoly. Depois, bem depois estourou em pleno remanso do lar a bomba de Hiroshima, a de Nagasaki também, além de que a central de Chernobyl se lembrou de explodir na sala de estar.
O meu escritório foi desde os primeiros dias do exílio ocupado pela Matilde que estuda Direito, os mais novos fecharam-se nos quartos, devem ter-se concentrado nos trabalhos da escola e eu fiquei sem saber para onde ir. Na sala da televisão não podia ser que era pertença da vontade de todos e dos youtubers da moda também. Restava-me criar um escritório no quarto. Inventei uma secretária que colocada junto à janela ficou muito bem, o computador a debitar a minha música, o silêncio e o sol a proporcionarem o sossego que me faz falta. Só até ao dia seguinte. Acordei com o novo escritório transformado em estúdio de televisão. No centro da secretária o microfone e o tripé da RTP, o computador grande para gravar os áudios mesmo ao lado.
Nesse dia desisti. Voltei-me ainda mais para mim, penso e recordo o percurso que me trouxe aqui, sonho com a esplanada e sou acordado do alheamento pela voz forte da Dona Lurdinhas que me chama a atenção para o dinheiro que ando a perder.
Coitada, ela não sabe, e eles também não, que o conforto material não substitui a areia alisada da praia dos dezassete anos numa noite de Verão.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Oliveira Martins e os portugueses


Oliveira Martins foi — para além de outras coisas — uma das figuras mais respeitadas da ciência histórica, ainda muito romanceada mas com influência na identidade colectiva portuguesa durante os séculos XIX e XX. 
Em 2015, o historiador Amândio Barros zurze em Oliveira Martins a propósito da escolha que este faz do local de nascimento de Fernão Magalhães. E cita, no livro que então publica, o influente escritor da Geração de 70 ironizando acerca da caracterização que ele faz dos transmontanos — “afirmativos e duros” —, dos minhotos — meigos e celtas — e dos alentejanos — capazes de “violência quase semita”. 
Sobre estas afirmações de Oliveira Martins nada vou comentar. Tenho as minhas ideias, mas estou de tal modo envolvido no viver das três regiões que mal me ficaria dizer qualquer coisa que seja.

sábado, 7 de março de 2020

Homens complicados


De um modo mais ou menos sofisticado respondo o mesmo, desde muito jovem, às mulheres lavadas em lágrimas: “Escolheste o mais complicado dos homens, agora choras, claro...”, “Ah mas os outros não me acrescentavam nada, só queriam comida na mesa e os telefonemas da mãezinha”, “Ok, mas devias saber que os mais interessantes causam sobressaltos permanentes”, “Sim, mas eu prefiro sofrer a ver o mesmo programa de televisão todas as noites.” “Ai é? Então acho melhor arranjares alguém que ande à tua volta... e se um dia ele vier a ter ciúmes podes manter a esperança de ele vir a ser teu... se não, esquece-o, ele que abra as asas e voe.”

sexta-feira, 6 de março de 2020

Em busca da tranquilidade


Na vida há dias especialmente difíceis. A espera pelo resultado da cirurgia de que ontem vos falei custou-me muito. Valeu-me no final do dia o regresso majestoso do meu amigo de sempre: o mar. Num perpétuo movimento que explica a relatividade do momento, por mais doloroso ele seja.

quinta-feira, 5 de março de 2020

À espera


Na sala de espera um grupo de pessoas sem idade. E sem vida também. Duas mulheres falam sem parar. Os outros não pensam em nada. Estão tão anestesiados como os familiares que logo depois das portas brancas estão a ser operados. 
Tal como a Patrícia. Durante muitos anos não pensei em viver este momento. A vida  parecia a dos filmes que víamos na tela. Apenas com mais contas para pagar, alguns parentes que não simpatizavam connosco, o carro que reclamava cuidados paliativos. 

No resto — no mar, nos dias de praia, nos fins de tarde de trabalho amaciados no Tekas Bar, na casa alugada com os filhos quando nasceram — tudo parecia ser infinito, e nós espécies de uma realidade transcendente, só nossa. 

Até que o maldito diagnóstico apareceu numa tarde de Inverno. De muita chuva. E eu quase a morrer naquele momento. E a Patrícia a dar-me a mão tentando transmitir-me a serenidade que vinha do olhar. 

Penso em tudo isto enquanto espero. A sala continua imóvel próxima do estado letal. As duas mulheres falam Um homem sentado perto de mim olha o meu telemóvel enquanto escrevo estas linhas (é o primeiro leitor deste arrazoado). Fico com a ideia de que lhe pareço um tolo. Adivinhou. 

As batas brancas entram e saem empurrando aquelas portas com uma roda de vidro a parecer as dos navios. 

Vejo uma enfermeira jovem que regressa da realidade atravessando a fronteira. Dirijo-me a ela. Quero saber como está a decorrer a operação. Anseio pelo momento de abraçar a Patrícia, recuperar o amor dos primeiros tempos. — Enfermeira, é capaz de me prestar uma informação?

A enfermeira sorri. Vou falar-lhe do meu amor.