sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Jantar de trabalho


— O Sr. Alfredo é muito cómico, faz-me rir. Nunca tive um chefe assim tão divertido. 
— Ainda não viste nada, Carlinha. Quando estivermos sozinhos aí sim, vais conhecer-me melhor, sem esta gente toda a olhar. 
— Ó que pena… se eu soubesse! Hoje não vai poder ser. Quando como sapateira espalha-se-me por todo o corpo uma alergia que só passa no dia seguinte. 
— Carago pró marisco que me custou os olhos da cara e ainda por cima faz isso. E logo hoje que estava a pensar levar-te à minha mansão e oferecer-te uma coisa que comprei na ourivesaria.  
— E há alguma farmácia no caminho? Talvez se eu usar uma pomada isto passe…

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

A camisola dos semáforos


Houve um tempo na minha vida em que Lisboa servia de ponto de paragem na viagem muito longa que fazia até ao Sul. Durante umas horas buscava na luz branca da cidade a disposição anímica para a semana que estava a começar. Passeava então pela Avenida da Liberdade e, invariavelmente, procurava nas montras da Rosa & Teixeira as novidades na roupa masculina de que, aliás, gostava quase sempre. Lá dentro, os funcionários atendiam clientes aos quais sentiam necessidade de etiquetar com algum título. Senhor ministro e senhor embaixador eram aqueles que ouvia com maior frequência. Não vos digo o meu — a modéstia obriga-me a tal. Gostava daquilo tudo. Principalmente da roupa que estava exposta por todo o espaço da loja. 
Na semana passada vi a fotografia que acompanha este texto numa publicidade da Rosa & Teixeira. Senti um arrepio. Aquelas camisolas com losangos e camisas de cor alaranjada fizeram-me lembrar as que comprei há trinta anos na mesma casa. Faziam um conjunto lindíssimo. Pelo menos eu achava, os outros não tenho a certeza, chamavam à camisola “a dos semáforos”, a mim o que importava…! Quem me vendeu as tais peças flamejantes foi a proprietária da loja, uma senhora perspicaz e muito elegante.  
Um destes dias tenho de lá voltar para comprar a nova versão da camisola dos semáforos e da camisa cor de vida feliz. 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O tempo, esse demiurgo implacável


Olhar a Malu Mader nessa fotografia é revisitar a atriz de quem todos se enamoraram e, também, o tempo que medeia a nossa adolescência da atualidade. Ninguém está igual, nem nós nem a dileta Malu. Passaram os dias, os meses, os anos. Muito tempo já.

Embora, vistas friamente as coisas, parece que tudo se resume ao dia de ontem. Namoramos, estudamos, ganhamos o primeiro ordenado, reconstituímos a vida uma e outra vez, e tudo isso passou muito rápido.

Que o diga o leitor. Por certo, garante não sentir diferença em relação ao período da vida em que via a Malu Mader na televisão. Por dentro somos os mesmos. Sonhamos, congeminamos aventuras por cumprir, estabelecemos projetos. Até ao momento em que nos olhamos no espelho. Ou festejamos os anos. Ou, então, desejamos alguém que não tem idade.

Por isso é que a pele do corpo da Malu é irrepetível. E aquele olhar de menina também. A alvura que ela transmite nenhum creme da marca da moda ou o bisturi do mais célebre cirurgião consegue replicar. Nem isso, nem a firmeza dos seios ou o desenho das ancas saídas da escultura de Rodin.

No entanto, se a encontrássemos sentada numa esplanada de Guanabara e nos sentássemos na sua mesa, ela continuaria desejável, podem estar certos disso, mais velha na textura do rosto, mas adorável no modo de falar e no acerto das ideias que transmite.

É uma mulher, a Malu agora. E bonita porque quem o foi nunca deixará de o ser. Só que a somar a tudo o que sempre constituiu a sua aura, dispõe hoje, aos 56 anos, da sabedoria que uma vida preenchida inevitavelmente traz. A inteligência faz-se, da mesma forma que a beleza também pode ser planeada. 

A maturidade consegue, em muitos casos, acrescentar capacidade de sedução. Poucas coisas podem ajudar a descobrir tanto o amor quanto a capacidade de compreender o outro. “Mas esse é outro tipo de amor, produto maior da razão e ínfimo da emoção” – dirão alguns. Pode ser, mas ainda assim bonito, terno, quente sempre. Quase, quase como a verdadeira Malu Mader a um palmo de distância da nossa respiração na esplanada de Guanabara.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A minha turma do liceu


Normalmente são as gavetas que guardam os acontecimentos que já fizeram parte de nós. De vez em quando, por uma razão estranha ao achado, abrimo-las e a surpresa acontece.

Foi o que aconteceu com esta fotografia. Vinte rostos de adolescentes olham para nós a perguntar-nos qualquer coisa que não entendemos. São colegas de turma deste vosso escrevinhador, por altura da frequência do secundário no Liceu de Viana. Entre as muitas turmas que tive não é esta a que recordo com mais nitidez; com estes rapazes e raparigas apenas me arrastei pelas salas de aulas durante dois anos. 

Com raríssimas excepções, não sei o que lhes aconteceu na vida. Nunca mais os vi, provavelmente se os visse não os reconheceria. Sei vagamente que alguns seguiram os caminhos do Direito, dois ou três são hoje professores. E pronto — é só isto o que conheço da vida que se lhes seguiu. 

Para os crentes nas minhas efabulações aviso desde já que não consto da imagem de grupo. Nunca gostei de ser fotografado, o que não traz prejuízos para ninguém.  

Um esclarecimento necessário: alguns daqueles jovens, ainda crentes no futuro que estava a começar, estão decapitados no instantâneo fotográfico. 

Não sei quem foi o artista de tal façanha — com sorte ainda se tornou um dos realizadores do cinema português de que ninguém guarda na memória.

Mesmo com todas as fragilidades técnicas, a imagem vale pelo olhar dos miúdos quase adultos e do que eles traduzem de esperança e de alegria no tempo que está logo ali, depois da curva do liceu. 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

O senhor do Santander


— Raul, já me conheces há muito tempo… diz-me, por favor, se o homem do Santander está aqui ou não!
— Já perguntei ao chefe e ele diz que não está nem vem cá hoje.
— Ah, obrigado, posso então jantar em paz com este amigo do meu marido.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Quando um automóvel vira vedeta


Sempre fui um defensor da participação popular nas redes da internet. Mesmo quando alguns, logo nos inícios da actual revolução mediática, chamavam a atenção para os perigos que daí poderiam advir. 

Ultimamente venho percebendo que ao meu optimismo vão faltando alicerces demonstrativos que o justifiquem. Na semana passada, uma situação relacionada com as redes sociais — vivida na primeira pessoa — parece ter dissipado em mim os últimos laivos de esperança numa sociedade racionalmente emancipada.

O sucedido, contado muito resumidamente, foi assim: alguns amigos enviaram para uma das minhas casas – situada no interior do país – mensagens, todas mais ou menos ao mesmo tempo, a dar conta da publicação de fotografias do meu automóvel no Facebook. Soube depois que tal desaforo tinha sido escarrapachado na página Operação STOP (o título fica completo com a indicação da cidade correspondeste). Um must. O grupo que a havia criado, constituído por um administrador e quatro moderadores, copiou outras iniciativas do género espalhadas pelas cidades de Portugal com o objectivo de denunciar os locais onde as forças policiais colocam radares para apanhar os incautos condutores. 

A razão da exposição pública do meu carro tinha a ver com o facto, explicado pelo denunciante, dele estar habitualmente estacionado num sítio que os outros não utilizam e onde, na apreciação do mesmo, é proibido estacionar. 

E para sustentar o seu ponto de vista, chama a atenção de que devido a este abusivo estacionamento os carros em circulação têm de pisar um traço contínuo. Até que seria aceitável este reparo se houvesse naquela rua algum… traço contínuo. Bem sei que não está ao alcance de todos a distinção entre uma linha contínua e descontínua!

E havia de acontecer isto a mim que durante tanto tempo me bati pela importância crescente do cidadão-jornalista na sociedade racionalizada de Jürgen Habermas! Se é para isto, o melhor é os candidatos à argumentação comunicacional estarem quietos e preocuparem-se com os assuntos do futebol.

Para piorar as coisas, numa das duas fotografias publicadas é visível a matrícula (embora tremida devido ao nervosismo do repórter fotográfico), incorrendo, assim, tanto o delator como os administradores da página, nos crimes de violação da privacidade e de perturbação da paz e do sossego pessoal e social. Imagine-se o que aconteceria se a publicação se referisse ao carro oficial que me está adstrito! Felizmente que tinha mandado para casa o motorista, o fiel Armando.  

As pessoas que vivem comigo, querendo menorizar a gravidade do caso, disseram, e com alguma razão, que carros iguais ao meu (ver imagem que acompanha este texto)) é o que mais há em qualquer lugarejo deste país. 

Perguntei quem era o informador, na expectativa de que fosse um inimigo meu, provavelmente do gabinete do Pedro Nuno ou mesmo do Costa.

“Não, não conheces, é um indivíduo da classe média”. Aqueles que têm alguma intimidade comigo sabem bem que o grupo social que mais detesto não é o dos pobres nem o dos ricos: é mesmo o da classe média, de tal forma que não tenho amigos, nem na vida real nem no Facebook, daquela casta sempre igual e cinzentona – e que têm no Big Brother o seu programa de televisão preferido, sentem-se na obrigação de ler Dostoiévski mesmo sem o perceber, são inimigos declarados das reivindicações dos pilotos da TAP, bebem compulsivamente cerveja Sagres, desprezam quem escreve, cospem para o chão, vestem fatos da marca Facho e são benfiquistas.

Sendo assim — disse à pessoa que me descrevia o Belzebu das redes sociais — vamo-nos deitar que amanhã cedo tenho reunião com a CEO da TAP. Entretanto, o discípulo do João Catatau deve estar a tentar ler Dostoiévsky.