sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Quando um automóvel vira vedeta


Sempre fui um defensor da participação popular nas redes da internet. Mesmo quando alguns, logo nos inícios da actual revolução mediática, chamavam a atenção para os perigos que daí poderiam advir. 

Ultimamente venho percebendo que ao meu optimismo vão faltando alicerces demonstrativos que o justifiquem. Na semana passada, uma situação relacionada com as redes sociais — vivida na primeira pessoa — parece ter dissipado em mim os últimos laivos de esperança numa sociedade racionalmente emancipada.

O sucedido, contado muito resumidamente, foi assim: alguns amigos enviaram para uma das minhas casas – situada no interior do país – mensagens, todas mais ou menos ao mesmo tempo, a dar conta da publicação de fotografias do meu automóvel no Facebook. Soube depois que tal desaforo tinha sido escarrapachado na página Operação STOP (o título fica completo com a indicação da cidade correspondeste). Um must. O grupo que a havia criado, constituído por um administrador e quatro moderadores, copiou outras iniciativas do género espalhadas pelas cidades de Portugal com o objectivo de denunciar os locais onde as forças policiais colocam radares para apanhar os incautos condutores. 

A razão da exposição pública do meu carro tinha a ver com o facto, explicado pelo denunciante, dele estar habitualmente estacionado num sítio que os outros não utilizam e onde, na apreciação do mesmo, é proibido estacionar. 

E para sustentar o seu ponto de vista, chama a atenção de que devido a este abusivo estacionamento os carros em circulação têm de pisar um traço contínuo. Até que seria aceitável este reparo se houvesse naquela rua algum… traço contínuo. Bem sei que não está ao alcance de todos a distinção entre uma linha contínua e descontínua!

E havia de acontecer isto a mim que durante tanto tempo me bati pela importância crescente do cidadão-jornalista na sociedade racionalizada de Jürgen Habermas! Se é para isto, o melhor é os candidatos à argumentação comunicacional estarem quietos e preocuparem-se com os assuntos do futebol.

Para piorar as coisas, numa das duas fotografias publicadas é visível a matrícula (embora tremida devido ao nervosismo do repórter fotográfico), incorrendo, assim, tanto o delator como os administradores da página, nos crimes de violação da privacidade e de perturbação da paz e do sossego pessoal e social. Imagine-se o que aconteceria se a publicação se referisse ao carro oficial que me está adstrito! Felizmente que tinha mandado para casa o motorista, o fiel Armando.  

As pessoas que vivem comigo, querendo menorizar a gravidade do caso, disseram, e com alguma razão, que carros iguais ao meu (ver imagem que acompanha este texto)) é o que mais há em qualquer lugarejo deste país. 

Perguntei quem era o informador, na expectativa de que fosse um inimigo meu, provavelmente do gabinete do Pedro Nuno ou mesmo do Costa.

“Não, não conheces, é um indivíduo da classe média”. Aqueles que têm alguma intimidade comigo sabem bem que o grupo social que mais detesto não é o dos pobres nem o dos ricos: é mesmo o da classe média, de tal forma que não tenho amigos, nem na vida real nem no Facebook, daquela casta sempre igual e cinzentona – e que têm no Big Brother o seu programa de televisão preferido, sentem-se na obrigação de ler Dostoiévski mesmo sem o perceber, são inimigos declarados das reivindicações dos pilotos da TAP, bebem compulsivamente cerveja Sagres, desprezam quem escreve, cospem para o chão, vestem fatos da marca Facho e são benfiquistas.

Sendo assim — disse à pessoa que me descrevia o Belzebu das redes sociais — vamo-nos deitar que amanhã cedo tenho reunião com a CEO da TAP. Entretanto, o discípulo do João Catatau deve estar a tentar ler Dostoiévsky.

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