domingo, 27 de dezembro de 2020

A vida a recomeçar


Foi assim que comecei o dia. Um frio de rachar. Os campos coberto por um manto branco feito de gelo. Os cavalos livres a percorrerem a herdade. E eu, o homem toda a vida da noite, a recuperar a memória das manhãs. A única coisa boa proporcionada por este confinamento que encerra a vida à uma da tarde.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dia de Natal


O sagrado e o profano lado a lado. A campearem pela atenção dos homens. Como se a vida pudesse dispensar a introspecção ou a festa. 
Quem me conhece sabe que não sou religioso. Mas tenho de reconhecer que este maldito ano de 2020 aproximou-me mais do pensamento que da mera emoção.  
E, principalmente, duma componente da vida que a pandemia valorizou: a família. Estar junto de quem nos quer bem deve ser o objectivo maior de cada um. 
Feliz Natal, meus amigos — e, por isso, meus familiares. Dêem cá um abraço.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Nós nos outros


Dois anos a calcorrear as ruas deste país à procura de histórias de vida. Inicialmente publicadas numa página online a que chamou de “Nós nos outros”, foram reunidas este mês em livro. Maria Helena da Bernarda é a autora do conteúdo integral da obra: dos textos, das fotografias, dos apontamentos biográficos dos entrevistados — que se transformam em testemunhos difíceis de esquecer — e, principalmente, do projecto que parecia condenado ao insucesso, tal era a sua exigência em termos de disponibilidade pessoal.
Só que a Maria Helena da Bernarda é um ser humano especial. Tudo o que faz faz bem. Economista de formação, foi até há poucos anos gestora de topo em empresas de prestígio internacional. Até um dia em que achou necessitar de outros voos para se sentir realizada. Abandonou o invejável cargo que desempenhava e fez aquilo que de vez em quando repete: pegou na mota e andou estrada fora, sem destino, à procura de si e do mundo que via para além das janelas do gabinete de trabalho.
Desde aí, nem um só dia deixou de absorver o melhor que a vida pode proporcionar aos que a entendem: voltou a tocar piano, apostou em aprender a fotografar — com excelentes resultados — e dedicou-se a conhecer as pessoas aparentemente vulgares que via nas ruas e cafés de Lisboa ou nas vilas e cidades de Portugal. A interpelá-las com genuíno interesse, a saber dos amores e desamores que por elas passaram ou, então, dos êxitos e fracassos da vida profissional. Dessas entrevistas informais nasceram as crónicas diárias e agora o belíssimo livro, profusamente ilustrado com as fotografias tiradas pela autora aos rostos dos homens e mulheres que todos conhecemos da rua.
Mulher sem idade, igual hoje ao que foi ainda jovem, altiva no comando, e no entanto uma alma carinhosa a ouvir os insucessos dos outros, é assim a Maria Helena da Bernarda que em boa hora os grandes órgão de comunicação social deste país, e alguns do estrangeiro, descobriram e dela fizeram referência nas televisões e nos jornais.
Uma prenda de agrado garantido para qualquer altura do ano, com 352 páginas em papel couché e muitas fotografias, vendida a 29 euros o exemplar.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Beber para esquecer


DONA LURDINHAS — Meninas, hoje o Senhor Doutor não vem dar consultas ao Porto. A GNR não o deixou passar na auto-estrada. O bar é ali ao lado.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Adeus robalo


Disse ao empregado que era grande demais. Mas o robalo olhava para mim de forma aparentemente solidária, como que a querer partilhar a vida de peixe desgraçado. Tive alguma pena dele, à minha frente estendido, dissecado até à medula. Do seu corpo saía fumo, prova de que deveria ter veraneado nas águas quentes do forno da cozinha. Será que não merecia tanta pena como parecia? Provavelmente era eu o pobre coitado em tudo isto. Quer um bocadinho de azeite da travessa? — perguntou o empregado. Logo o robalo ganhou outras cores. Como se viesse de passar férias nas Maldivas. E eu em Matosinhos a olhar para uma criatura de Deus recuperada do cansaço de um ano de escritório — deitada à minha espera. Peguei nos talheres, olhei nos olhos o robalo e comi-o.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Aniversário do Henrique


Não sei se alguma vez aconteceu com o leitor algo parecido. Na sexta-feira passada um médico afamado confirmou o que pensava ser mero pretensiosismo meu. O Henrique é outra vez o pai. Vou tentar explicar: para além de se assemelhar a mim no comportamento ele é, para o bem e o mal, a cópia em termos fisiológicos e psicológicos do progenitor. Nomeadamente ao nível do sistema nervoso central. O que necessariamente lhe vai trazer problemas, mas também algumas alegrias. Ser diferente, alguns o sabem, não é fácil. Torna-se alvo de incompreensões, de ciúmes e de prejuízos vários no relacionamento com os outros.
A verdade é que na escola ninguém compreendeu o Henrique. Até aos dias de hoje. O mesmo tinha acontecido comigo pelo menos até ao 12º ano. Eu e o Henrique gostamos demasiado da vida para a estudar apenas nas sebentas. Precisamos de ver as pessoas a digladiarem-se na vã tentativa de virem a ser felizes. Na rua, no ecrã do computador, na esplanada.
O Henrique faz hoje 13 anos. Está um homem. Bonito, sedutor, difícil. Quando eu morrer vai ele ser eu vivo. A continuar os estudos que ainda não terminei. E a namorar as filhas daquelas mulheres que durante algumas horas desejei.
Não há palavras que possam traduzir o amor que sinto por ti, meu querido filho. Se pudesse viveria em tua vez as dificuldades que vais encontrar, e deixava-te apenas as noites estreladas em frente ao mar. E todos os outros momentos e pessoas que saibam fazer-te sorrir. A vida tem coisas boas.
Parabéns Henrique Manuel Francisco Sérgio de Barros e Barros.

domingo, 18 de outubro de 2020

Três nomes grandes da cultura luso-tropical


Esta fotografia é só uma fotografia. Na vida real as coisas não são assim. Nenhum artista grande suporta outro que lhe possa tirar a exclusividade. Sorri, cumprimenta com aparente afectuosidade e desespera pelo fim daquele momento. E não é por causa da soberba: na maioria das vezes a razão está na mera insegurança. A plebeia incerteza de alguém dizer que o outro é melhor — a fazer das suas. E nós, meros espectadores de tudo isto, sem perceber que para se falar da vida é preciso saber senti-la da mesma forma que o mais anónimo dos homens.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Os 15 anos da Maria Leonor de Barros


A minha filha Leonor faz hoje anos. Quinze mais concretamente. Um oitavo da vida dela. Está quase a escrever as memórias.

Ela não mas eu sim. É a lei natural a fazer das suas. A Leonor a começar... e eu a tirar o bilhete para recomeçar um dia. A vida como sempre a lucrar com a mudança de gerência: a minha filha é muito melhor do que eu. Não sei a quem sai o raio da rapariga.

Desde pequena que dissecou, olhou de um lado e outro tudo o que a interpelasse em termos de curiosidade. Sem que fizesse alarde disso, discreta como a raposa, mas com o radar de observação sempre em funcionamento. Perscrutava o mundo sem que os outros se dessem conta disso.

Nunca a vi estudar. E no entanto ela estuda, não pode ser de outra forma. O nome no quadro de honra do liceu não pode ir lá parar por obra do divino espírito santo. É organizada nos horários, no cumprimento das tarefas que lhe estão assacadas.

Às aulas regulares acrescentava até ao ano passado as do conservatório. E ensaiava o violino fechada no escritório e resguardada do olhar dos outros. Às vezes zangava-se com a música que saía dos seus dedos pequenos e, por arrastamento, com ela mesma. 

Nessas alturas não falava com ninguém. Até ter vontade de recuperar o domínio da situação. Então voltava a ser a Leonor de sempre, genial, conhecedora dos assuntos como se de uma adulta se tratasse.

De há algum tempo para cá descobri que entre aqueles que me rodeiam - na universidade, na esplanada, na vida, no facebook mesmo - a Leonor conseguia o impensável: ultrapassava todos no acerto das sua sentenças sobre qualquer dúvida que eu tivesse. Utilizando poucas palavras, com a objectividade própria de quem sabe.

Mas tudo isto, minha querida Leonor, poucos sabem acerca de ti. Não perdes nada por isso. Tens muito tempo pela frente. E caminho também. De tal modo que ainda podes pensar em todas as possibilidades de vires a ser. Primeira-ministra, directora do instituto Ricardo Jorge, escritora, encarregada de condomínio, mãe, cliente de esplanada de praia, campeã de tiro aos pratos - são algumas das possibilidades.

E sempre - lamento informar-te da impossibilidade de não o seres - superiormente inteligente. Vinga-te sorrindo por dentro da venalidade dos outros. Com a discrição a que nos habituaste.

No resto, duvida dos homens: não há um que se aproveite. Com excepção daquele que tiver a sorte de cair nas tuas graças. Nessa altura espero não lhe partir nenhuma costela quando o abraçar.

Do teu Pai que tanto te ama, minha querida Leonor, parabéns pelos quinze anos de vida.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Aniversário do meu Pai


Agora sei que foi muito bom começar os meus estudos universitários pela filosofia. Muitos outros jovens deveriam fazer o mesmo. 

Depois poderiam enveredar por outras áreas. Mas o estudo das questões gerais e ao mesmo tempo radicais proporcionam uma compreensão muito especial da vida. 

Penso em tudo isto no dia em que o meu Pai faz 85 anos, uma idade que necessariamente nos impele a procurar afirmações sobre a verdade do tempo que passou. 

Sem que o consigamos. Uma das primeiras coisas que se aprende em filosofia é a noção de que a vida materializa-se num eterno retorno, num círculo nunca concluído. 

Quer dizer, o tempo de cada um está sempre em construção. Dando azo a revisões, a argumentos novos, a certezas que nunca o foram. 

Há, no entanto, na vida do meu Pai, verdades que dificilmente o tempo poderá alterar. Inteligente, dinâmico, ousado são características que desde sempre lhe valeram o reconhecimento dos outros a nível profissional e empresarial. 

No jornalismo, o facto de ser actualmente um dos muito poucos elementos de uma geração que criou publicações periódicas novas e possibilitou o surgimento de nomes naquela área, atesta a sua importância inquestionável. 

Mas a verdade primeira de todas as que no meu Pai me interessam refere-se ao acerto com que prosseguiu um percurso de vida sempre desejado pelos que o antecederam. 

Não degenerou no sonho dos seus e, por consequência, meus familiares. Escreveu a vida toda. 

É neste ponto que ainda hoje tenho medo de não ter atingido aquilo que me competia — o de prosseguir um desígnio que tive tudo para o conseguir. 

O meu Pai faz hoje 85 anos, digo-o uma vez mais. Foi este ano submetido a uma cirurgia muito difícil. Não quisemos dar notícia deste facto. 

Está em satisfatória recuperação. Vamos tê-lo connosco muito tempo ainda. 

Os que gostarem de História e de Jornalismo só poderão ficar contentes com a notícia. Os que nada sabem nem de uma ou doutra coisa, como por exemplo, os membros da autarquia de Viana, vão ficar na mesma como sempre estiveram. 

O meu respeito e a minha admiração, meu Pai. Pode ser que um dia um dos meus filhos escreva sobre mim qualquer coisa parecida. 

Parabéns.

domingo, 4 de outubro de 2020

Sumo de limão


Limões. Ácidos e ao mesmo tempo deliciosos. Bonitos de cor e de forma. Apetece tocar-lhes deslizando os dedos pela curva que vai ter ao promontório deles. Quando aberto e mordido entre os lábios, é então o momento de percebermos que tudo que é bom começa por nos arrepiar. Mas não podemos desistir. O que aí vem é a natureza transformada em seiva original. Igual ao sangue, às lágrimas, ao leite que bebemos da nossa mãe.

Tributo à Gioconda


Passei a manhã toda com ela — a Gioconda. A melhor companhia feminina, logo a seguir à D. Lurdinhas (ai não... que ela pode estar a ler isto!).

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Aniversário de Inês Matilde Barros


Lembro-me como se fosse hoje de conduzir 300 quilómetros na madrugada de uma má estrada, para chegar a tempo de ver nascer a minha filha. Tive outras vezes de me esforçar, não muitas, para estar no momento certo junto dela. Mesmo sem a cartucheira que um dia encomendei a pensar nos amigos da Matilde mas que nunca chegou ao destino. Também não foi preciso: ela soube ao longo do tempo escolher e cumprir o itinerário da sua vida. Está no terceiro ano de Direito na faculdade do país com a nota mais alta de admissão. Acho que vai ser juiz. Tem pinta disso. Se não for, que seja a única coisa que me interessa no seu percurso: a de ser feliz.
Tinha jurado não mais escrever estes postais de aniversário. Mas é difícil resistir. A tarde torna-se noite, o papel em branco, e a promessa a mim mesmo a escapar entre os dedos que escrevem estas palavras. 
A fotografia? Descobri-a, entre uma profusão delas, destinadas segundo parece a um cartaz que por aí circulou da Matilde presidente, nem sei bem de quê. 
O que eu quero para a noite de hoje? Sabê-la apaixonada pela vida, pela mãe, pelos irmãos e pela Vodka. E, vá lá, por mais alguém que ela esteja certa de a merecer. 
Parabéns pelos 20 anos, querida Matilde. E não digo mais nenhuma palavra nem vou reler o que acabei de escrever de um fôlego só. Sabes porquê? Porque não iria conseguir.  
Um beijo, meu amor.

domingo, 27 de setembro de 2020

O mar da Foz


O mar faz uma falta visceral na minha vida. O som, o cheiro, a cor, a imensidão de horizonte trazem-me calma. Confirmei-o ontem ao longo da Avenida Brasil, na Foz, enquanto caminhava. Quem desenhou esta artéria da cidade do Porto deve ter pensado em tipos como eu, preguiçosos, normalmente sentados atrás de uma secretária. É, com efeito, muito longa e plana. Com flores, piso liso, uma pérgola de betão armado belíssima e... eu. Eu e grupos de pessoas interessantes, todas elas — para casar, namorar ou ver o Eixo do Mal acompanhado. 
E ao lado de tudo isto, de forma majestosa e definitiva, o mar. Com os barcos à minha espera — um dia há-de ser — a desafiarem a constância do sítio onde nos encontramos. 
Eu próprio, ontem à tarde, durante a caminhada na Foz, se me perguntassem de onde era, acho que por momentos hesitaria e só passado o estupor inicial seria capaz de dizer a verdade: sou de perto do mar — mesmo quando estou longe dele.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Adeus Verão

Vai pra dentro, ó Verão, que o Outono já chegou. E pró ano vê se trazes a perna que te falta. Ah! É verdade: fala com Deus Nosso Senhor a ver se não se esquece de trocar esse olho de vidro por um a sério.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Ser professor nos dias de hoje


Era um jovem de 21 anos quando chegou ao liceu onde haveria de dar aulas até aos dias de hoje. Recebeu-o no seu gabinete austero, escuro da falta de sol e do mobiliário de pau-preto, o reitor que meses depois a escola saneou sem hipótese de defesa. Eram os tempos da revolução no país e no ensino. Nada ficou igual nas escolas de Portugal. Quando iniciou funções docentes tinha terminado o curso na faculdade de ciências do Porto. Curso de prestígio: matemática aplicada. Em todo o lado era respeitado. O senhor doutor como está, e a mãezinha está melhor? — perguntava o mais anónimo dos homens da cidade pequena. Depois... depois foi sempre a descer na na escala do prestígio social. Furaram-lhe os pneus do carocha, de uma outra vez taparam a abertura do tubo de escape com uma batata. Inventaram-lhe uma alcunha, o Hipotenusa, esperavam na esquina do corredor que a campainha tocasse, o professor com as mãos a servir de amparo ao compasso de madeira mais a régua e os mapas. 

Este é o último ano em que dá aulas. Não sabe se com alívio ou amargura. Ensinou milhares de alunos. Alguns escrevem-lhe e saúdam-no com alegria nas ruas. A maioria faz de conta que não o conhece. Os pais perguntam ao “stôr” se não tem vergonha em abotoar-se com o dinheiro dos impostos e traumatizar o João Pedro e a Constança. 

Falta pouco tempo, professor. Em Julho voltará à solidão definitiva da sala de jantar. A menos que entretanto a Covid-19 o leve consigo. O governo da nação agradecerá sensibilizado

sábado, 12 de setembro de 2020

A azémola encarnada


É verdade que todos nós já erramos muitas vezes ao longo do tempo. Às vezes nas coisas mais básicas. Mas aquilo que desde ontem se tornou notícia ultrapassa quase tudo: António Costa integra a comissão de honra da candidatura de Luís Filipe Vieira. É verdade que o Benfica é um Estado dentro de um Estado. Tem tanta importância simbólica para os portugueses emigrantes em França ou para aqueles que fizeram a Guerra Colonial como a Nossa Senhora de Fátima. Debaixo da sua bandeira ninguém pode ser preso ou sequer acusado pela justiça. Só depois de deixarem de exercer funções no clube poderão então ser incriminados. Foi isso que toldou a capacidade de discernimento do político mais habilidoso da história recente de Portugal. Bastava ter considerado o facto de Vieira estar a ser investigado em demasiados casos. E de aquele informático de Gaia continuar a acossá-lo com cobertura internacional.
Para além de que esta comissão de honra é conhecida na semana em que Ana Gomes anunciou a candidatura a Belém. 
Mas que burrice, Costa! O animal da foto nunca cairia numa coisa dessas. 
É por isso que cada vez tenho mais respeito pelas azémolas.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Vicente Jorge Silva


A minha grande paixão em termos de actividade pública foi desde sempre o jornalismo. Desde muito pequeno devorei os jornais e as revistas que se cruzavam no meu caminho. A admiração pelos jornalistas (e pelos escritores) é deste modo fácil de explicar. A vida toda foi preenchida pelos jornais e pelas noites inteiras a fazê-los. 
Nos últimos tempos tenho andado muito pessimista em relação à profissão de jornalista. E tudo porque o jornalismo, em particular o português, dá ares de estar em agonia sem retorno. O fim da escrita que contava o que se passava e falava das pessoas, dos seus problemas, sem qualquer intenção encomendada, está a acontecer dia a dia. 
Hoje, 8 de Setembro de 2020, foi espetado um dos últimos pregos no caixão que há-de levar até à tumba esta admirável profissão - pelo menos tal como a conhecíamos. A morte de Vicente Jorge Silva, ocorrida esta madrugada, é mais do que um sinal. É o fim de uma era que dificilmente será revertida.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A revolta das mulheres


— Vá, ordem no galinheiro. Meninas, estamos aqui para silenciar aquele conselheiro filosófico de aviário que anda a escrever acerca do sacrifício de ser homem. Isto não pode continuar assim, o tipo é misógino e chauvinista. Vamos mandar uma petição para o Dr. Ferro Rodrigues e para a Isabel Moreira que eles põem-no a falar fininho! O raio do homem...

domingo, 23 de agosto de 2020

Festas D'Agonia - a despedida



Hoje à noite aconteceria com a Serenata o fecho da edição de 2020 das Festas D’Agonia. A pandemia, como em quase tudo o resto, não permitiu a realização da edição deste ano. Os vianenses sofreram com o facto, há um desgosto colectivo que tomou conta do Agosto habitual. 

Mas não vale a pena pensar mais nisso. Há realidades que nos ultrapassam tal é a força que as move. Nestas circunstâncias deve-se aproveitar o que de negativo não podemos controlar para assim extrairmos lições para o presente e para o futuro. E de facto aconteceram nestes dias de festa adiada coisas demasiadamente importantes para serem subvalorizadas.

A título de contextualização convém dizer que o mais preocupante, a nosso ver, de tudo o que vem acontecendo relativamente às festas de Viana tem a ver com o progressivo desaparecimento (ou retirada forçada pela doença) de figuras notáveis do saber etnográfico alto-minhoto.

Mas atenção: elas não se revelaram só excepcionais sob o ponto de vista da erudição; eram, também, personalidades aparentemente insubstituíveis ao nível do poder do discurso, fosse ele exercido na televisão ou na festa do traje, só para citar dois exemplos. Não é fácil encontrar pessoas com o conhecimento e a qualidade comunicacional de Francisco Sampaio, Maria Emília de Vasconcelos, António Manuel Couto Viana, Maria Manuela Couto Viana, Diogo Pacheco d’Abreu Teixeira, Amadeu Costa, António de Sousa Gomes, Manuel Freitas, Francisco Cruz e Pedro Homem de Melo.

Repare-se que só falamos daqueles que connosco viveram nos últimos cinquenta anos. Antes deles, outras gerações em muito contribuíram para a divulgação da riqueza dos trajes, das danças e das tradições de Viana. 

Veja-se o caso de Manuel Couto Viana, autor daquilo que hoje seria conhecido como a “imagem institucional” das Festas D’Agonia, para além da divulgação do traje, dos costumes ancestrais e ainda da criação do formato que conhecemos das festividades. Aquilo que ele retratou ainda subsiste em termos de “design” e faz lei na actualidade.

Este ano, mesmo sem festa, tem-se assistido a sinais que parecem auspiciosos ao nível da renovação de gerações. Nomes novos de gente jovem que ama as festas e que quer fazer coisas. Sejam elas quais forem desde que relacionadas com a cidade e com a sua festa maior. Foi o caso de vídeos que surgiram nas últimas semanas com motivos originais, músicas tradicionais recriadas, roupas reinventadas, motivos diferentes de exaltação popular genuína.

Claro que tudo isto é possível, e bem-vindo, desde que não colida com a autenticidade histórica. E aqui surge o último dos receios: a de que esta geração embora preparada nas universidades tenha na sua formação conteúdos marcadamente tecnocráticos e desconheça as ciências necessárias para o estudo exaustivo, e complexo, das vicissitudes etnográficas e antropológicas do noroeste português.

Mas vamos acreditar que sim. Aquilo que preocupou os vianenses mais conhecedores, nomeadamente no que se refere ao modo como o poder autárquico geriu os assuntos da etnografia e da festa nos últimos anos, parece estar ultrapassado.

Agora falta patrocinar doutoramentos e a publicação de obras na área dos rituais de celebração colectiva no Alto-Minho, no estudo das origens celtas deste povo, nas particularidades da economia rural, marítima e tecnológica que estiveram desde sempre presentes na vida da população vianense. 

E depois trazer os novos saberes para a organização das festas juntando-os ao conhecimento etnográfico. Então sim, tudo poderá ser feito, desde a renovação do desenho de Couto Viana até à criação de novo repertório musical ou a divulgação de um modo original de escrever as festas. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

À procura de tubarões


Milésimo dia de férias. Já não sei o que fazer para voltar a pensar, tal tem sido a preguiça dos dias. Convenceram-me a andar mar adentro à procura de golfinhos, baleias, tubarões-tapete e tubarões-cobra. Enfim, algo de entusiasmante. Mesmo aquilo de que estou a precisar. 
No barco as pessoas não eram alentadoras nem à vista nem à conversa. A não ser, esperem, estou ver qualquer coisa: já repararam naquelas unhas tão bem tratadas? Mais tarde vou perguntar-lhe onde as “aplainou”. 

Dos animais prometidos o mar presenteou-me só com os golfinhos. Os tubarões-tapete, pelos quais tenho uma predilecção antiga, devem ter rumado a Arraiolos, que por aqui não andam. 

No barco, os marinheiros de água-doce estão contentes com os golfinhos, quer dizer, quase todos, que no grupo da Rosalía das unhas vistosas alguém está mal disposto. Parece que vai vomitar. Qual deles será? Se for a Rosalía vou ajudá-la. 

Não é. Quem está pálido, com a cabeça encostada à borda da embarcação — agora vejo — é o rapaz que acompanha a Rosalía e as amigas. 

Pobre mundo este. Já nada se parece com antigamente. Desde que a tropa acabou que os homens andam assim. A  Rosalía das unhas bonitas ainda vai mandar nisto tudo.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Os idiotas


O servilismo de alguns homens perante as mulheres sempre me causou repulsa. “Diga menina, o que meu anjo escolher...” - Deus arrependido do estado a que chegaram os chefes de família. Não era assim que tinha pensado no páter de rosto grave, e o povo quieto à espera de um gesto seu. “Ou vens embora agora ou então escusas de me procurar mais” dizem elas desprendidas de tudo mais. E o palerma, cabeça baixa a seguir aquela saia que, por sinal, sempre achou curta. “ Então o qu’é que a senhora decide?” pergunta o gerente do banco ao casal que se senta na frente da secretária. A vida não está fácil para o sexo forte. O Benfica a perder campeonatos, o Chega ainda longe de mandar nisto tudo. 
 
“A senhora quer acender o cigarro?” É p’ra já já. Basta fazer da fragilidade o pavio de um mundo louro e lindo.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Em memória do meu liceu


Uma vez li num livro que um miúdo francês disse à mãe: “Não vou voltar à escola; lá só ensinam coisas que eu não sei”. Nunca mais esqueci isto. A afirmação fez ecoar em mim uma série de recordações da escola que frequentei. E não eram felizes as memórias desse tempo.
A escola nunca gostou de mim; e eu devolvi-lhe com igual ênfase aquele sentimento. Frequentava as aulas, mas não escutava uma só palavra do que nelas se dizia. Lembro-me de os professores queixarem-se desse comportamento aos meus pais, de quem eram amigos: “Não percebo o vosso filho. Ele está sempre com a cabeça na lua.”
Retribuo-lhes agora, passados estes anos todos, o epíteto com que provavelmente me brindavam nas reuniões de avaliação: “Mau aluno.” Pois também eles eram maus, muito maus professores. Eram arquitetos, engenheiros quase formados (mas que nunca completaram o curso; não precisavam), contabilistas que sabiam apenas da vida que aos números sucedem os números, mulheres muito velhas que esperavam pela reforma que não mais chegava (fui a alguns velórios de professores).
Contas feitas, cheguei ao 11º ano de escolaridade sem saber nada do que se ensinava naquele liceu. Nada ou quase nada. Claro que as notas eram tão tristes como as minhas aulas. Um autêntico desastre. Sobravam as meninas de olhos bonitos nos intervalos. Aí sim, acordava para a vida. E nesses minutos compensava o desfiar monossilábico das palavras que os professores diziam naqueles cinquenta minutos de tortura.
Ainda por cima esses engenheiros e arquitetos e velhas de pantufas por causa dos diabetes desconheciam algo de que não fazia segredo, mas ninguém quis saber: desde os nove anos de idade que devorava os livros todos que pelos meus olhos passavam. Aos onze anos tinha lido já os principais autores brasileiros, a maioria dos livros deles, aos doze e treze os americanos e os russos. Isto no tempo em que não ouvia nada do que os velhos mestres diziam nas aulas. Uma ou outra professora de português desconfiaram de qualquer coisa naquele miúdo que estava, mas ao mesmo tempo não estava, na aula. A mãe do José Eduardo Agualusa aconselhou-me livros de autores portugueses, falava comigo depois da aula, já os outros se tinham ido embora.
Lembro-me de uma vez me ter vingado a sério da escola, quando os meus colegas de turma tiveram de ler em voz alta um texto do meu pai que estava no manual de Português, sem que alguém naquela sala fosse capaz de nos associar um ao outro.
No décimo segundo ano, deu-se a viragem. 
Nesse tempo, o último ano do secundário era constituído apenas por três disciplinas, e nelas tinha de se investir estudando os temas de forma autónoma, como se fazia na universidade. Não havia um manual único para cada tema. A necessidade de investigar exigia de nós que procurássemos outras fontes, outros autores. E então mudei um pouco a visão que tinha do liceu. A crise de 1383-85 interessava-me, e as raparigas que se esforçavam uma, três, quatro, cinco vezes a dar à perna para pôr o motor da mota a funcionar, conseguiam fascinar-me ainda mais.
Vistas a esta distância, as recordações do liceu fazem-me sorrir e, ao mesmo tempo, deixam-me seriamente preocupado. E tudo porque o ensino de hoje pouco mudou em relação ao daquele tempo. A mesma procura da mediania achada por uma bitola igual para todos. Além de que, e como se isso não bastasse, as motas arrancam de um modo cada vez mais fácil.

domingo, 24 de maio de 2020

Primeiro desconfinamento


O mundo todo resolveu mostrar hoje o movimento de que sempre foi feito — utilizando o léxico da pandemia: desconfinou.

Relembrou a alguém como eu, que tem estado em casa e na internet desde meados de Março, que a vida prossegue, as mulheres continuam lindas e os homens assim assim. 

E, por momentos, vi o o mundo sem ventiladores nem intensivistas a ajudá-lo a respirar. 

Agora só falta eu sair do confinamento.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Ser do Norte é ser menos educado, segundo a TVI


O iniciado nas lides jornalísticas que fez a peça televisiva do Jornal das 8 de ontem, na TVI, queria dizer “menos escolarizada” em vez de “menos educada”, quando se referiu à população do Norte. Mas mesmo este último dado não está comprovado através das estatísticas oficiais.  
Na área da saúde, aquela que estava na origem da reportagem em questão, é por todos reconhecida a excelência das escolas médicas do Porto, dos profissionais que trabalham na região e a qualidade internacional dos diversos centros de investigação em genética, cancro e novas tecnologias em saúde, só para citar alguns exemplos. 
Além de que o facto de a Covid-19 ter sido disseminada na Europa a partir do Norte da Itália, não faz da Lombardia e das suas cidades, o berço dos cidadãos menos educados daquele país. 
Solução para um desaforo destes? É fácil: a administração da TVI deve escolher com urgência para a função de director de informação alguém que perceba verdadeiramente de jornalismo (e que saiba distinguir escolarização de educação). 

domingo, 12 de abril de 2020

A Páscoa, a quarentena e eu


Pensei não escrever nada este ano. O tempo que estou a viver é tudo menos feliz. Nem a Páscoa nem mesmo a quarentena têm culpa, mas esta é verdade. 

De tal forma que a redenção, o voltarmos a ser mas agora diferentes — a que tradicionalmente apelo — desta vez não estão na gaveta onde guardo os desejos por cumprir. 

Por agora basta-me que tudo continue como era antes. Com os defeitos que abomino, eu sei, mas que tornam possível o espanto perante as coisas positivas. Tal como a imbecilidade é o único critério a partir do qual se mede uma pessoa sofrível ou a aberração neo-nacionalista torna aceitável a política actual portuguesa. 

Eu quero a empregada da esplanada que não reconhece a diferença em mim, o homem embriagado que vocifera contra tudo e todos, a mulher que pensa que vai ser mais feliz quando tiver no seu regaço o rosto adormecido do maior bandido da cidade.  

Tudo isto na esperança de que melhores tempos hão-de chegar. Se possível dentro de dias. Ou então de horas. E tu e tu vão estar juntos a mim. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O chefe das polícias


— É a avó, a esposa, o filho ranhoso, a amante e o Zé Tó a conduzir o carrinho na Páscoa. Comigo não! Vou pôr os polícias no itinerário para Viana, nas estradas para a Serra da Estrela, para o Guincho e para a Praia Verde. E se me chatearem mando a GNR cercar Alcácer-Quibir. Comigo ninguém brinca!

domingo, 29 de março de 2020

A esplanada vazia


Exilarmo-nos em quarentena não é tarefa fácil. Mesmo que de início tenhamos a genuína vontade de estarmos sós. Mas essa determinação pessoal não pode nunca ser imposta. Traduzir em letra de lei a inutilidade das cadeiras da minha solitária esplanada é ferir a liberdade de acção. Mesmo que não fizesse tenção de me sentar nelas.
E isto porque a epidemia provocada pelo maldito vírus coincidiu com um tempo difícil da minha vida. Por isso é que não tenho escrito quase nada, limito-me a procurar nos despojos da memória algum texto que não me deixe mal.
Na doença do meu pai reside a razão principal deste estado de espírito. No dia da operação a que foi sujeito senti debaixo dos meus pés o terramoto de Lisboa, no coração um enfarte a caminho, e nos olhos uma tristeza sem fim.
Está neste momento em convalescença e o pior parece já ter passado. Mas estes meses reafirmaram a certeza de que o meu pai é ainda, passado este tempo todo, o esteio da estrutura de mim e do meu mundo. E que ainda não estou pronto a ser definitivamente pai.
O resto do sofrimento tem a ver com a quarentena ela mesma. Na altura em que alinhavo estas linhas, estou fechado em casa há 24 dias. A santa da Dona Lurdinhas ralha-me de hora a hora, às vezes chego a pensar que o braço levantado lá detrás das costas vai ter como destino alguma parte de mim, chama-me a atenção para a lista de consultantes que esperam para escutar o meu saber, a fortuna que estou a perder e coisas do género.
O problema é que já não sei se quero continuar com este tipo de vida, as aulas, mais as consultas, a paixão do jornalismo e a esplanada vazia por ordem do governo. Começo a sentir-me cansado de tudo.
E em casa, neste tempo de quarentena, a família não parece estar melhor. Nos primeiros dias era um autêntico milagre, os meninos entusiasmados a meu lado a escolherem filmes para ver, a jogar ao Monopoly. Depois, bem depois estourou em pleno remanso do lar a bomba de Hiroshima, a de Nagasaki também, além de que a central de Chernobyl se lembrou de explodir na sala de estar.
O meu escritório foi desde os primeiros dias do exílio ocupado pela Matilde que estuda Direito, os mais novos fecharam-se nos quartos, devem ter-se concentrado nos trabalhos da escola e eu fiquei sem saber para onde ir. Na sala da televisão não podia ser que era pertença da vontade de todos e dos youtubers da moda também. Restava-me criar um escritório no quarto. Inventei uma secretária que colocada junto à janela ficou muito bem, o computador a debitar a minha música, o silêncio e o sol a proporcionarem o sossego que me faz falta. Só até ao dia seguinte. Acordei com o novo escritório transformado em estúdio de televisão. No centro da secretária o microfone e o tripé da RTP, o computador grande para gravar os áudios mesmo ao lado.
Nesse dia desisti. Voltei-me ainda mais para mim, penso e recordo o percurso que me trouxe aqui, sonho com a esplanada e sou acordado do alheamento pela voz forte da Dona Lurdinhas que me chama a atenção para o dinheiro que ando a perder.
Coitada, ela não sabe, e eles também não, que o conforto material não substitui a areia alisada da praia dos dezassete anos numa noite de Verão.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Oliveira Martins e os portugueses


Oliveira Martins foi — para além de outras coisas — uma das figuras mais respeitadas da ciência histórica, ainda muito romanceada mas com influência na identidade colectiva portuguesa durante os séculos XIX e XX. 
Em 2015, o historiador Amândio Barros zurze em Oliveira Martins a propósito da escolha que este faz do local de nascimento de Fernão Magalhães. E cita, no livro que então publica, o influente escritor da Geração de 70 ironizando acerca da caracterização que ele faz dos transmontanos — “afirmativos e duros” —, dos minhotos — meigos e celtas — e dos alentejanos — capazes de “violência quase semita”. 
Sobre estas afirmações de Oliveira Martins nada vou comentar. Tenho as minhas ideias, mas estou de tal modo envolvido no viver das três regiões que mal me ficaria dizer qualquer coisa que seja.

sábado, 7 de março de 2020

Homens complicados


De um modo mais ou menos sofisticado respondo o mesmo, desde muito jovem, às mulheres lavadas em lágrimas: “Escolheste o mais complicado dos homens, agora choras, claro...”, “Ah mas os outros não me acrescentavam nada, só queriam comida na mesa e os telefonemas da mãezinha”, “Ok, mas devias saber que os mais interessantes causam sobressaltos permanentes”, “Sim, mas eu prefiro sofrer a ver o mesmo programa de televisão todas as noites.” “Ai é? Então acho melhor arranjares alguém que ande à tua volta... e se um dia ele vier a ter ciúmes podes manter a esperança de ele vir a ser teu... se não, esquece-o, ele que abra as asas e voe.”

sexta-feira, 6 de março de 2020

Em busca da tranquilidade


Na vida há dias especialmente difíceis. A espera pelo resultado da cirurgia de que ontem vos falei custou-me muito. Valeu-me no final do dia o regresso majestoso do meu amigo de sempre: o mar. Num perpétuo movimento que explica a relatividade do momento, por mais doloroso ele seja.

quinta-feira, 5 de março de 2020

À espera


Na sala de espera um grupo de pessoas sem idade. E sem vida também. Duas mulheres falam sem parar. Os outros não pensam em nada. Estão tão anestesiados como os familiares que logo depois das portas brancas estão a ser operados. 
Tal como a Patrícia. Durante muitos anos não pensei em viver este momento. A vida  parecia a dos filmes que víamos na tela. Apenas com mais contas para pagar, alguns parentes que não simpatizavam connosco, o carro que reclamava cuidados paliativos. 

No resto — no mar, nos dias de praia, nos fins de tarde de trabalho amaciados no Tekas Bar, na casa alugada com os filhos quando nasceram — tudo parecia ser infinito, e nós espécies de uma realidade transcendente, só nossa. 

Até que o maldito diagnóstico apareceu numa tarde de Inverno. De muita chuva. E eu quase a morrer naquele momento. E a Patrícia a dar-me a mão tentando transmitir-me a serenidade que vinha do olhar. 

Penso em tudo isto enquanto espero. A sala continua imóvel próxima do estado letal. As duas mulheres falam Um homem sentado perto de mim olha o meu telemóvel enquanto escrevo estas linhas (é o primeiro leitor deste arrazoado). Fico com a ideia de que lhe pareço um tolo. Adivinhou. 

As batas brancas entram e saem empurrando aquelas portas com uma roda de vidro a parecer as dos navios. 

Vejo uma enfermeira jovem que regressa da realidade atravessando a fronteira. Dirijo-me a ela. Quero saber como está a decorrer a operação. Anseio pelo momento de abraçar a Patrícia, recuperar o amor dos primeiros tempos. — Enfermeira, é capaz de me prestar uma informação?

A enfermeira sorri. Vou falar-lhe do meu amor.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Coitadinhos


Há dias em que não se pode sair de casa... ia eu absorto nos meus pensamentos, todos eles muito sérios, relacionados com as minhas amigas leitoras, quando de repente... deparo-me com estes senhores em grupo na escadaria... os polícias a aproximarem-se cada vez em maior número, disseram-me que não poderia estar ali, mostrei o meu cartão VIP, pediram desculpa... mas não quis ver mais... de certeza que aqueles homens e mulheres iam ser presos... e não sei porquê, não gosto de ver ninguém a ser algemado e a ser levado para a carrinha celular. Coitadinhos dos senhores.