quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Memória emoldurada


São pedaços de mim que estão pendurados em fotografias naquela parede. Significam momentos de importância maior na minha viagem. Uns mais acidentados do que outros — mais alegres que sombrios a maioria deles. Todos fazem parte de igual forma do percurso que me fez chegar aqui. Sem cada um não seria quem sou — para desdita de tantos e fortuna de muitos poucos. A vida é assim: oceano de significâncias contrárias perto da praia onde repousamos o espírito e o corpo. Até voltarmos a ter de percorrer a estrada insubmissa e bela.

sábado, 13 de novembro de 2021

O passado e o presente


“0k. Tens umas pernas aceitáveis mas sem histórias para contar como as minhas. Faltam-lhe gargalhadas e soluços. E seiva dos homens também.”

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Transgressão quase-trágica


Tinha acabado de entrar no café com o propósito de descansar um pouco do trabalho no jornal quando o viu sentado numa mesa perto da entrada. Era das últimas pessoas que gostaria de encontrar naquele fim de tarde.

Mas agora não havia nada a fazer: o indivíduo já o tinha visto. A única atitude a tomar era sentar nalgum lugar livre e esperar a sande e o vinho branco de sempre. 

Acabou por não ficar longe do homem de ar severo e bigode farto. Corpulento como seria de esperar num polícia do esquadrão de elite, o sujeito passou a dirigir o olhar firme na direcção do jornalista. Metia respeito o tipo.

Quando atendeu a mulher dele estava o Verão a começar, e ela voluptuosa e de vestido bonito, a participar o atendimento negligente de uma sobrinha no hospital. 

Nessa altura não poderia calcular que o marido fosse aquele bófia de ar assustador, ali sentado a olhar para ele, três ou quatro mesas à frente.  

Nas noites de serviço policial, o escriba e a mulher do vestido despido conversavam depois de fazerem amor estendidos na cama adúltera, e ela então contava-lhe, entre outras coisas, das medalhas recebidas pelo marido em reconhecimento dos bons serviços. 

Mas nada disso serviu de aviso ao repórter do Jornal Novo. E agora ali estava ele, prestes a ser estrangulado pelo polícia do corpo de elite.  

O mundo deu de si quando a gabardine dos filmes de acção e o corpo que a vestia se levantaram. Os olhos do marido enganado pareciam revólveres a fumegar de tanto disparar. Deixou o dinheiro da despesa e caminhou com vagar em direcção à mesa do escriba do amor. A morte estava a chegar inadiável. O prazer do corpo da mulher do vestido bonito prestes a transformar-se em maldição.  

O polícia aproximou-se, levou a mão ao bolso e foi-se embora. Saiu pela porta do café, a mesma que haveria de dar passagem, muito tempo depois, ao D. Juan lívido de medo.  

Foto: Stephan Vanfleteren

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O Presidente e o PSD


Palácio de Belém. Oito da noite. Os jornalistas acotovelam-se. Rui Ochôa, fotógrafo da presidência, corre espavorido, máquina na mão, cabelo a esvoaçar, para ocupar o melhor lugar. O presidente vai falar ao país.

— Portugueses: a situação é difícil em todo o mundo. Na Indochina ou no Monte Estoril. Em Portugal a situação tornou-se clara: a geringonça acabou. Resta-nos esperar por uma alternativa à direita. Com Paulo Rangel? Porventura. Com Rui Rio? Com esse a minha resposta só pode ser esta — e tira da boca uma língua esticada e fina.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A Lenka míope


— Olha o Sr. Fernando Mendes… então como está?
— Um espectáculo! 

— E a Lenka? Está por aí?

— Foi lá dentro experimentar uns óculos progressivos. Com esta promoção… há que aproveitar. 

— Ela tem problemas de visão?

— Não vê um tipo apaixonado como eu a um palmo de distância.