quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Transgressão quase-trágica


Tinha acabado de entrar no café com o propósito de descansar um pouco do trabalho no jornal quando o viu sentado numa mesa perto da entrada. Era das últimas pessoas que gostaria de encontrar naquele fim de tarde.

Mas agora não havia nada a fazer: o indivíduo já o tinha visto. A única atitude a tomar era sentar nalgum lugar livre e esperar a sande e o vinho branco de sempre. 

Acabou por não ficar longe do homem de ar severo e bigode farto. Corpulento como seria de esperar num polícia do esquadrão de elite, o sujeito passou a dirigir o olhar firme na direcção do jornalista. Metia respeito o tipo.

Quando atendeu a mulher dele estava o Verão a começar, e ela voluptuosa e de vestido bonito, a participar o atendimento negligente de uma sobrinha no hospital. 

Nessa altura não poderia calcular que o marido fosse aquele bófia de ar assustador, ali sentado a olhar para ele, três ou quatro mesas à frente.  

Nas noites de serviço policial, o escriba e a mulher do vestido despido conversavam depois de fazerem amor estendidos na cama adúltera, e ela então contava-lhe, entre outras coisas, das medalhas recebidas pelo marido em reconhecimento dos bons serviços. 

Mas nada disso serviu de aviso ao repórter do Jornal Novo. E agora ali estava ele, prestes a ser estrangulado pelo polícia do corpo de elite.  

O mundo deu de si quando a gabardine dos filmes de acção e o corpo que a vestia se levantaram. Os olhos do marido enganado pareciam revólveres a fumegar de tanto disparar. Deixou o dinheiro da despesa e caminhou com vagar em direcção à mesa do escriba do amor. A morte estava a chegar inadiável. O prazer do corpo da mulher do vestido bonito prestes a transformar-se em maldição.  

O polícia aproximou-se, levou a mão ao bolso e foi-se embora. Saiu pela porta do café, a mesma que haveria de dar passagem, muito tempo depois, ao D. Juan lívido de medo.  

Foto: Stephan Vanfleteren

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