terça-feira, 22 de março de 2022

Quando a realidade ultrapassa a ficção


Voando sobre um ninho de cucos. Mas não daquelas aves cantoras que conhecemos dos nossos campos agrícolas; nem das que saíam de uma gaiola de madeira assinalando as horas. Não, do que aqui se trata é de um hospício que acaba de receber um novo hóspede, tão deslocado da realidade que o próprio Jack Nicholson olha para ele com ar de espanto. O caso não é para menos: o novato naquele espaço é um facínora da pior espécie. 

sábado, 19 de março de 2022

A meu Pai


De manhã não me lembrei que hoje é dia do Pai. Só na esplanada, pejada de famílias como é costume ao Sábado, é que se fez luz, com o tema a ser falado em muitas das mesas. 

Em casa, ao almoço, confirmou-se a efeméride. Estavam todos. Até a mais velha dos caçulas, finalista no Porto, estava presente. O próprio menu tinha sido escolhido em função dos meus gostos.

Olhei para aquela gente, a minha gente, e não lhes quis fazer a desfeita de não participar agradecido nos festejos — num dia em que habitualmente o meu pensamento se revolve numa dialéctica sem fim à vista. 

Tudo porque continuo a sentir-me mais filho do que iniciador do quer que seja. Talvez que o facto de o meu pai ser vivo e a presença e a lembrança dele ter muito impacto em mim explique isto. Alguém disse que apenas crescemos verdadeiramente depois de ficarmos sós no mundo. Aí sim, tornamo-nos adultos. 

No meu caso, as coisas não serão bem assim. Pouca gente sabe mas o meu pai viverá para sempre. Na sede do jornal, na Praça da República, no meu coração. E dessa forma continuarei apenas a ser o jovem sonhador aprendiz de escritor.

Os meus quatro filhos um dia compreenderão esta vontade inabalável.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Inconstância amorosa


Ontem os astros estavam em amena cavaqueira entre si. E nós fomos felizes como no dia em que experimentamos a pele um do outro. 
Hoje as coisas correram mal. Eu não estive bem e tu não estiveste muito melhor. Decidimos romper os dias que nos estavam destinados pelo amor. 
Amanhã tudo será melhor. Vamos voltar a ser nós mesmos. Com a liberdade de à tarde olharmos o mar sozinhos e à noite procurarmos alguém na pista de dança. Por volta das cinco da manhã vou querer-te de volta. 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Putin e o medo de si


Esta fotografia é todo um tratado, seja qual for o ângulo pelo qual a analisemos. Nela regista-se para a posterioridade uma reunião de Vladimir Putin com dois altos responsáveis militares.

Nada na disposição dos lugares ocupados por aqueles homens aponta, aos olhos de um ocidental, para um lastro de normalidade que seja. Putin sentado na extremidade da mesa e os dois generais a uns seis metros de distância. Como se o presidente da Federação Russa fosse um ser providencial, de natureza divina e, por isso, pertencente a uma dimensão transcendente.

Abdicando do pretensiosismo de produzir um retrato psicológico de quem não conhecemos, talvez seja útil, no entanto, relembrar aquilo que o senso comum popularizou há muito tempo: “o complexo de superioridade não existe; aquilo que julgamos como tal mais não é que a manifestação de um sentimento de inferioridade”.

Uma coisa afigura-se-nos indesmentível: um indivíduo que proceda como aquele da fotografia é, por certo, alguém inseguro, incapaz de olhar para dentro de si, frustrado de muitas situações, rancoroso dos outros porque são normalmente vistos como ameaça – ou então perspectivados como seres fracos com quem se estabelece uma relação do tipo senhor-vassalo.

Os sociopatas são identificáveis a partir de alguns destes traços. Normalmente são pessoas infelizes na medida em que não conseguem o maior dos seus obectivos: ser iguais aos outros.

Por via disso, tornam-se frequentemente perigosos nos relacionamentos. Por vezes não olham a meios para prosseguir metas de aniquilamento dos outros e, dessa forma, poderem aquietar sentimentos de fracasso.

Espero que os meus receios em relação à personalidade de Putin, de algum modo explanados nestas linhas, não se confirmem. As mulheres e as crianças em agonia nos escombros do Teatro de Mariupol merecem melhor sorte.

domingo, 13 de março de 2022

O papel da família na guerra da Ucrânia


Um país só o é se tiver um povo que se identifique com ele. Nestas primeiras duas semanas de guerra a Ucrânia deu mostras da consistência daquilo que os une. Fizeram da vontade de resistência um sentimento de todos — velhos, mulheres, crianças, homens-soldado. 

Alguns as armas calaram mas logo outros avançaram para os substituir, quer vivessem nas cidades em conflito ou na invejada Europa.  

Neste esforço todos colaboraram. A família, enquanto núcleo fundamental onde corre o mesmo sangue, deu provas da sua importância nesta guerra. Cada um dos seus elementos desempenhou um papel. Sem qualquer excepção. 

Esta é uma lição que ninguém pode fingir que não viu. É demasiadamente evidente mesmo para aqueles que reclamam tratar-se de um conceito desactualizado e, por isso, negligenciável. 

Neste núcleo de existência nem os gatos ou os cães ficaram de fora. Foram tratados como os homens e as mulheres da família. Andaram milhares de quilómetros em condições inenarráveis, dormiram e comeram da mesma forma que os humanos. 

Mas que grande lição deu o povo ucraniano! Com a arma na mão ou com a força do abraço da mãe ganharam a guerra mesmo que a venham a perder militarmente. 

Aquele miúdo de dois ou três anos que, na estação de comboios, não aceitava a separação do pai vestido com a farda do exército, a quem com a mão pequenina dava sapatadas furiosas no capacete de metal verde, é a imagem de tudo o que nestes malditos quinze dias se tem passado. 

Foto Observador

segunda-feira, 7 de março de 2022

A solidão nos homens e nas mulheres


O mal de se ser D. Juan a vida toda é um dia ficar só. O mesmo se passa, embora de forma menos dramática, com as mulheres que sempre pugnaram pela vida sem compromissos relacionais. 

Os homens não nasceram para estarem sós. A ancestralidade empurrou-os os desde sempre para a formação de um grupo do qual ele é de algum modo responsável. 

E esta é altura em que as leitoras se sentem mais indignadas: “o Dr. Francisco diz isto por comodismo: é altura de calçar as pantufas e regressar ao lar, mas para isso precisa de uma criada para todo o serviço”.

Estão tão enganadas: o amor, tanto dos homens como das mulheres, é a consumação da possibilidade de gostarmos de nós mesmos através do rosto do outro. Ou das mãos. Ou do café que o outro sabe fazer. 

Mas então o amor é egoísmo, pode mesmo classicar-se em situações-limite de narcisismo?!

Vão vivendo. A aprendizagem decorre sem darmos conta disso. 

Uma coisa é certa: não há nada pior do que ver uma biografia na RTP2 e não ter a quem dizer que o indivíduo retratado é um grande estafermo. Como todos os homens e mulheres de quem tanto gostamos.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Ser livre


No princípio somos células nervosas e sinapses que estabelecem relações entre elas. Mais nada. O sistema nervoso é a casa das máquinas de um navio perdido em pleno mar. Por isso é que quando nascemos, a liberdade na escolha das sinergias nervosas ainda é muito grande. Depois vêm as convenções sociais, a escola, a vizinha do 3* andar e, quando damos por isso, tornámo-nos funcionários de manga de alpaca, iguais a todos os outros. 
Claro que, como em tudo o resto, há um ou outro indivíduo que não vai por aí. Que faz questão de permanecer livre. Ou quase. Fica agarrado à condição de extravagante numa sociedade que não o aceita. E sofre. 

terça-feira, 1 de março de 2022

Espelho Mentira


Eu sou duas pessoas numa só. O espelho mostra alguém que não conheço, devolve um rosto que dizem ser meu, mas ele é apenas um sonho mau. Aceito que seja parecido porque os outros o confirmam. 

No entanto, quando me imagino continuo a ser a menina da minha mãe, da Dona Alice. Endiabrada com a vida, ufana de alegria quando corria no fim do dia de aulas.  

Entretanto fui crescendo. Eu e o Artur, meu vizinho de casa e das brincadeiras de criança. Ele foi estudar para Lisboa, eu para Coimbra. Namorei e ele namorou. Nenhum de nós quis saber e casamos. 

Foram anos de um azul límpido interrompido uma vez ou outra por nuvens fugazes. Até que o demiurgo da noite e da bruma o levou. 

Se me sinto sozinha? Claro que sim. Vezes a mais para a jovem juíza que reunia pessoas em volta sempre que respirava. 

Na casa hoje só vagueiam o cão e dois gatos que se habituaram a ser velhos. Gente viva não se vê nas redondezas. Há quem ainda frequente o Ateneu e a Pastelaria Docelândia mas sem saberem que já morreram e foram enterrados no tempo do El-Rei D. Manuel II.  

De vez em quando vou até à rua. Levo o rosto de quando era miúda e deixo aquele que não é meu na esquina do sofá. Pode ser que ainda encontre o Artur e os amigos a apanhar grilos nos campos.  

Carnaval 2022