Eu sou duas pessoas numa só. O espelho mostra alguém que não conheço, devolve um rosto que dizem ser meu, mas ele é apenas um sonho mau. Aceito que seja parecido porque os outros o confirmam.
No entanto, quando me imagino continuo a ser a menina da minha mãe, da Dona Alice. Endiabrada com a vida, ufana de alegria quando corria no fim do dia de aulas.
Entretanto fui crescendo. Eu e o Artur, meu vizinho de casa e das brincadeiras de criança. Ele foi estudar para Lisboa, eu para Coimbra. Namorei e ele namorou. Nenhum de nós quis saber e casamos.
Foram anos de um azul límpido interrompido uma vez ou outra por nuvens fugazes. Até que o demiurgo da noite e da bruma o levou.
Se me sinto sozinha? Claro que sim. Vezes a mais para a jovem juíza que reunia pessoas em volta sempre que respirava.
Na casa hoje só vagueiam o cão e dois gatos que se habituaram a ser velhos. Gente viva não se vê nas redondezas. Há quem ainda frequente o Ateneu e a Pastelaria Docelândia mas sem saberem que já morreram e foram enterrados no tempo do El-Rei D. Manuel II.
De vez em quando vou até à rua. Levo o rosto de quando era miúda e deixo aquele que não é meu na esquina do sofá. Pode ser que ainda encontre o Artur e os amigos a apanhar grilos nos campos.
Carnaval 2022
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