sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

COMUNICADO

Venho por este meio informar as clientes do Sr. Doutor que na próxima semana não poderão usufruir do contacto humano com aquele santo homem.  
Do facto pede-se desculpa mas o Sr. Doutor soube hoje que foi infectado pelo Belzebu, razão pela qual teve de adiar todos os compromissos de agenda. 
Aproveito para anunciar o pequeno aumento de 32 euros no preço das consultas a partir do dia 3 de Janeiro. 
Maria de Lurdes Fonseca

domingo, 26 de dezembro de 2021

Só tu me fazes grande


Só me sento quando sentares também. Não quero estar só com o mundo todo como interlocutor. A paisagem é extensa a ponto de me apoucar. Sinto-me um ser dispensável, igual a tantos outros perante um horizonte sem fim. As tuas mãos nas minhas costumam acalmar-me e dizerem que não sou tão insignificante assim. Que tenho dedos de pianista e olhos de quem leu os clássicos a eito. E eu então sou capaz de beijar-te e afirmar perante o mundo que sou maior que eu mesmo. Com uma força que me deixa espantado. A ponto de te fazer outro filho ou mesmo dizer que és boa pessoa. E de que ninguém tem direito a magoar-te.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Noite de Natal

Cheguei. Tarde como sempre. Os poucos transeuntes que ainda encontrei disseram-me ser hoje noite de Natal. Grande surpresa a minha: não tinha dado conta da data festiva. Vou tentar ser feliz nem que seja a despropósito. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

O belo na arte


O belo pode ser traduzido de milhentas formas. Através da palavra escrita, da pauta de música, da aguarela ou da fotografia, para só citar algumas possibilidades. Significa isto que o mesmo conceito ou sentimento manifestam-se de modo muito próprio nas diferentes formas artísticas. A dor ou o riso são os mesmos, a técnica e os materiais a utilizar primam pela diversidade.
Ao contrário do que a aparência nos diz: pintar ou fotografar parecem ser caminhos interpretativos que não podem alguma vez confundir-se. E, no entanto, tanto na tela como na película fotográfica procura-se o mesmo – a exteriorização do que nos vai interpelando à procura de sentido.
“Ah, mas a fotografia só pode aspirar a materializar processos figurativos, ao contrário da pintura”, dirão muitos. Estão tão enganados. A fotografia de rua deu-nos sobejos exemplos de que o transcendente pode ser captado pela lente de uma Leica. Que o diga Cartier-Bresson.
Ao mesmo tempo que o pintor pode não ser capaz de ultrapassar a mera reprodução de um objecto, incapaz, por isso, de sublimá-lo ao nível de uma dimensão absolutamente outra, captando a sua essência, que é aquilo que aproxima o resultado artístico do patamar de qualidade pretendido.
E nisto reside o segredo da boa produção pictórica ou literária ou outra: a tentativa da materialização possível do conceito de belo, por exemplo. Aliás, é neste plano de interpretação de uma ideia que muitos soçobram, esquecendo que toda a realidade resulta da confluência da objectividade e subjectividade.
A Gala pintada de costas pelo seu marido Dali é personificação do belo porque participa daquilo que só as realidades que não se inscrevem na vulgaridade do dia-a-dia são capazes de possuir. Da mesma forma, a apreciação da beleza depende também da educação, da vida e dos gostos daí decorrentes que nos caracterizam. Só desta forma seremos capazes de entender que a reprodução do corpo da mulher-amante daquele pintor catalão não é tão somente arte figurativa – é muito mais do que isso.
Talvez isto ajude a explicar porque algumas obras têm apreciações aproximadamente consensuais.

(De referir que a imagem que acompanha este texto é a fotografia de uma modelo chamada Francesca e que normalmente vive entre Ibiza e a Toscana)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Ao Francisco e à Marília


Vi-os outro dia numa fotografia de uma rede social. Lá estavam os dois, cúmplices como sempre, boas pessoas à espera que os outros o sejam também. Olhei para as caras deles e senti os olhos humedecidos pela emoção. 
Trinta anos nos separam em termos de convivência. Por essa altura cheguei à vila alentejana onde o casal vive, professor acabado de estagiar, novo portanto, vindo do Norte. Tinha sido colocado a dar aulas de Filosofia e Psicologia na escola secundária local. 
Não tinha casa onde ficar a viver, como é óbvio. A única sugestão que recebi era a de um quarto, propriedade de um cangalheiro, que fazia os seus serviços no andar de baixo. 
Ora eu e a morte não temos uma relação muito fácil. Não aceitei e foi o tal casal que me salvou. Um primeiro andar só para mim e o rés-do-chão ocupado pela família alentejana rica que, de certa forma, se tornou também minha.
O resto da história um dia contá-la-ei, quando a extensão dos textos não afugentar ninguém.  
Fica só este pormenor para suscitar a curiosidade do leitor: nas primeiras semanas, era habitual o telefone tocar madrugada fora na casa dos senhorios, com a voz de um indivíduo que dizia ser agente da judiciária a informá-los de que tinham albergado na mansão um indivíduo muito perigoso, nem podiam calcular quanto... 
Uns meses depois, o casal de proprietários sondou-me para ser padrinho de um dos filhos, tal era a amizade que havíamos conquistado dia a dia, conversa a conversa, chá príncipe a chá príncipe.  
Tenho muitas saudades vossas. 

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Memória emoldurada


São pedaços de mim que estão pendurados em fotografias naquela parede. Significam momentos de importância maior na minha viagem. Uns mais acidentados do que outros — mais alegres que sombrios a maioria deles. Todos fazem parte de igual forma do percurso que me fez chegar aqui. Sem cada um não seria quem sou — para desdita de tantos e fortuna de muitos poucos. A vida é assim: oceano de significâncias contrárias perto da praia onde repousamos o espírito e o corpo. Até voltarmos a ter de percorrer a estrada insubmissa e bela.

sábado, 13 de novembro de 2021

O passado e o presente


“0k. Tens umas pernas aceitáveis mas sem histórias para contar como as minhas. Faltam-lhe gargalhadas e soluços. E seiva dos homens também.”

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Transgressão quase-trágica


Tinha acabado de entrar no café com o propósito de descansar um pouco do trabalho no jornal quando o viu sentado numa mesa perto da entrada. Era das últimas pessoas que gostaria de encontrar naquele fim de tarde.

Mas agora não havia nada a fazer: o indivíduo já o tinha visto. A única atitude a tomar era sentar nalgum lugar livre e esperar a sande e o vinho branco de sempre. 

Acabou por não ficar longe do homem de ar severo e bigode farto. Corpulento como seria de esperar num polícia do esquadrão de elite, o sujeito passou a dirigir o olhar firme na direcção do jornalista. Metia respeito o tipo.

Quando atendeu a mulher dele estava o Verão a começar, e ela voluptuosa e de vestido bonito, a participar o atendimento negligente de uma sobrinha no hospital. 

Nessa altura não poderia calcular que o marido fosse aquele bófia de ar assustador, ali sentado a olhar para ele, três ou quatro mesas à frente.  

Nas noites de serviço policial, o escriba e a mulher do vestido despido conversavam depois de fazerem amor estendidos na cama adúltera, e ela então contava-lhe, entre outras coisas, das medalhas recebidas pelo marido em reconhecimento dos bons serviços. 

Mas nada disso serviu de aviso ao repórter do Jornal Novo. E agora ali estava ele, prestes a ser estrangulado pelo polícia do corpo de elite.  

O mundo deu de si quando a gabardine dos filmes de acção e o corpo que a vestia se levantaram. Os olhos do marido enganado pareciam revólveres a fumegar de tanto disparar. Deixou o dinheiro da despesa e caminhou com vagar em direcção à mesa do escriba do amor. A morte estava a chegar inadiável. O prazer do corpo da mulher do vestido bonito prestes a transformar-se em maldição.  

O polícia aproximou-se, levou a mão ao bolso e foi-se embora. Saiu pela porta do café, a mesma que haveria de dar passagem, muito tempo depois, ao D. Juan lívido de medo.  

Foto: Stephan Vanfleteren

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O Presidente e o PSD


Palácio de Belém. Oito da noite. Os jornalistas acotovelam-se. Rui Ochôa, fotógrafo da presidência, corre espavorido, máquina na mão, cabelo a esvoaçar, para ocupar o melhor lugar. O presidente vai falar ao país.

— Portugueses: a situação é difícil em todo o mundo. Na Indochina ou no Monte Estoril. Em Portugal a situação tornou-se clara: a geringonça acabou. Resta-nos esperar por uma alternativa à direita. Com Paulo Rangel? Porventura. Com Rui Rio? Com esse a minha resposta só pode ser esta — e tira da boca uma língua esticada e fina.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A Lenka míope


— Olha o Sr. Fernando Mendes… então como está?
— Um espectáculo! 

— E a Lenka? Está por aí?

— Foi lá dentro experimentar uns óculos progressivos. Com esta promoção… há que aproveitar. 

— Ela tem problemas de visão?

— Não vê um tipo apaixonado como eu a um palmo de distância.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Desistência sentida


Não, não… vou-me embora. Isto não se faz. Ou bem que é Verão ou Outono. Agora uma e coisa e outra em simultâneo, é abusar da credulidade das pessoas. 

Saí de casa a pensar que ia abrir caminho por entre o nevoeiro, suportar o vento a sulcar-me rugas na face, vestir camisola por cima de camisola. E ao invés de tudo isto um sol luminoso de fim de tarde a aquecer as almas dos jovens namorados. 

Os deuses do Olimpo a brincarem comigo. 

No areal mulheres deitados ao sol gozam os últimos dias de Outubro. Das roupas escuras a tapar o peito feminino nem vê-las naquela alameda imensa. 

Não, não estou p’ra isto. Vou voltar p’ra perto do croché da Nanda e ver o Trio de Ataque. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Carta a um adolescente só


Sempre que te sentires só, o mais triste de todos os homens, sem amigos, sem um projecto de vida definido, escreve. 

Mas escrever sobre o quê? — pergunta o jovem adolescente. Sobre ti mesmo. As tuas inseguranças, a razão delas, o tanto que te fazem sofrer. 

Dessa forma poderás entender-te melhor, racionalizando a tristeza, o desconhecimento de ti e dos outros. 

Para além de que através da escrita terás sempre a possibilidade de escolher situações diferentes, homens e mulheres fascinantes, locais de sonho. Depressa compreenderás que a vida é teatro, mentira consentida, e aceitável por isso mesmo. 

Faz desta estratégia de superação a identidade inteligível em cada página. Com uma condição: tens de ler para poderes escrever. Não é possível uma coisa sem a outra. Se assim não fizeres nada compreenderás. Nem as tuas faculdades nem as falhas dos outros.  

A este propósito: observa a vida olhando-a de forma compreensiva. Senta-te numa esplanada e aprecia-a sem que nada te escape. Ou então quando fores a um concerto, a uma inauguração, a uma viagem, a um velório. E pensa em cada pormenor. 

Por último, não escrevas nem vivas qualquer tentativa de perfeição. A vida não é assim, nem as pessoas nem tu. O que torna tudo mais interessante. Sobra espaço para a criatividade e para o livre arbítrio. 

E não te esqueças: sê feliz. Escreve e faz e escreve. Mesmo quando trabalhares num laboratório, num museu, numa escola. 

E ama. A ti e à vizinha do terceiro andar. Ela sente mais a solidão do que tu. Porque não escreve.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Jornalismo d'antanho


Hoje deu-me para vasculhar fotografias antigas. Esta data de 2006 e foi feita na comemoração do centenário do Notícias dos Arcos. Num tempo irrepetível.

Os jornais ainda eram todos impressos. Os leitores, na sua maioria, tornavam-se assinantes e os correios levavam as notícias a casa. As páginas tipografadas eram lidas por causa do interesse nos assuntos locais mas também em resultado de um hábito herdado dos pais e dos avós. 

Foram verdadeiras escolas da leitura e da escrita. Os grandes nomes de hoje viram os seus textos publicados pela primeira vez nestes jornais. 

Na fotografia que encima este texto, vêem-se uns cinco ou seis directores (e proprietários) desses órgãos de comunicação social. Deles restam dois vivos.

Alguns dos integrantes do grupo transformaram-se em nomes de ruas, de equipamentos sociais e de muita saudade. 

Um dos dois directores vivos é meu pai. Vai ainda viver muitos anos, eu sei. Entre outras razões porque gosto muito dele. Para aqueles que não o reconheceram, é o primeiro dos convivas sentados (à esquerda). Ao lado do célebre Frederico Pinheiro — o homem que foi incumbido de me ensinar a nadar, coitado dele. 

Teria tanto a dizer sobre esta gente e este tempo. Infelizmente os contemporâneos já se esqueceram da importância deles na vida social e cultural das vilas e cidades. 

Ah! Agora me lembro: o meu pai faz hoje anos. Percebe-se, assim, este roteiro de saudade. Com a certeza de que o futuro só existe quando alicerçado naquilo que já passou. Parabéns, meu pai. O meu futuro também és tu.

sábado, 9 de outubro de 2021

O Zeca de Sacavém


Apresento-vos o meu cão. É giro, não é? Chama-se Zeca e é muito vivo, sempre em rebuliço pela casa toda. Adoptei-o em Sacavém e desde o dia em que o trouxe estabelecemos uma ligação muito forte. Quando chego do trabalho está sempre à porta tentando saber de quem se trata. Quando me vê larga numa correria doida até aos aposentos da Dona Lurdinhas na tentativa de não me incomodar. É realmente um cão fantástico. No dia em que alguém aceitar levá-lo vou sentir uma grande tristeza.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

O piano


Depois deste tempo todo sem ir a uma sala de espectáculos, assisti por estes dias a um concerto do Filipe Pinto-Ribeiro com a Orquestra de Câmara de São Petersburgo. Dos violinos e dos outros instrumentos de cordas não vou falar porque nada trouxeram de assinalável para esta crónica, para além da execução esperada de uma harmonia exercitada até à exaustão. Mas o piano, meus senhores, valeu por tudo o resto: pelos russos todos, pela decoração do teatro, pela noite de Outono, pelo público que não vi. Daquele instrumento musical, imponente desde logo na sua dimensão, saía um som que não era um só – parecia a reunião de todos os possíveis, mas numa intensidade forte, capaz de nos interpelar fisicamente. Nota a nota, tecla a tecla, a música que dele saía era desconcertante porque nada na sua fluidez se tecia da mesma forma que no som anterior. Filipe Pinto-Ribeiro, e isto só é possível nos grandes pianistas, modelava em cada nota da pauta mil e uma formas de a cumprir – e na maioria das vezes de modo tão amplo quanto a vida toda.
Já era tempo da maldita pandemia nos permitir uma trégua na vontade adiada de espectáculos com esta qualidade.

domingo, 26 de setembro de 2021

Solidão urbana


Hoje saí de casa para votar. As mais das vezes estou na sala fria da casa com a manta a cobrir as pernas e a televisão a quebrar o silêncio. Na carpete o gato Atum partilha a minha solidão.

Ultimamente não me sinto feliz. Não tenho a quem dizer o que seja, a minha mulher morreu o ano passado, a filha mora com a família na outra banda do rio. Os camaradas da bisca foram um a um desaparecendo. Restam poucos, todos eles tristes e ensimesmados como eu.

O mundo em que eu vivo já não é meu, sinto-o muitas vezes. Não sei quem são as pessoas de quem a televisão fala, os cantores do meu tempo foram substituídos por figuras grotescas vestidas de forma estranha. O próprio Benfica já não é tão glorioso como antes. 

Estou a pensar mudar de poiso nas horas livres. Em vez de ir para o para o Santa Maria vou começar a frequentar o Champalimaud Clinical Centre. Ainda vou arranjar alguém que queira fazer-me companhia. A mim e ao Atum.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

As séries da RTP2


A enorme qualidade das séries da RTP2, emitidas todos os dias às 22 horas, é o segredo mais bem guardado em Portugal.  
Procurar em canais de streaming produtos televisivos que o melhor canal nacional proporciona com igual valor é sinal de provincianismo.

domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Sampaio, o cidadão-presidente


A memória da multidão é breve e injusta. Na semana passada, os comentários dos leitores dos jornais e dos frequentadores das redes sociais – secundados por alguns textos de jornalistas – falavam com enfado da previsível morte de Jorge Sampaio. A exoneração da administração Santana Lopes era a razão aduzida por todos, esquecendo-se esta turbe que aquele governo caiu por si mesmo, tantas as trapalhadas em que se envolveu.

Nos últimos três dias, surpreendentemente, os portugueses redescobriram o Presidente Sampaio. Nem uma só crítica se ouviu nas televisões, só elogios ao “homem bom”, ao cidadão impoluto, ao homem de causas. A pouco e pouco, foram-se mesmo descobrindo situações desconhecidas do grande público, vividas num tempo político especialmente difícil.

Os desaparecidos detractores de Jorge Sampaio enganaram-se acerca deste homem. Ele foi o mais próximo do ideal republicano de todos os presidentes eleitos depois do 25 de Abril. Discreto, institucionalista, avesso aos rankings de popularidade, diplomata de excepção, cidadão-presidente igual nos direitos a qualquer outro português.

Tive oportunidade de o conhecer pessoalmente. Recordo com saudade um jantar num dos mais bonitos hotéis do país, o de Santa Luzia.

Só mais duas coisas muito breves. A primeira, refere-se ao comportamento da mulher e dos dois filhos, o André e a Vera, nas cerimónias fúnebres, exemplar a todos os títulos. 

Por último, Portugal, país de nove séculos, poderá ter, um dia destes, de recuperar o debate, por mais paradoxal que possa parecer, entre as vantagens do republicanismo e da monarquia numa União Europeia progressivamente federalista.

sábado, 11 de setembro de 2021

Vinte anos depois


Vinte anos se passaram já. A realidade a ultrapassar a mais extravagante imaginação hollywoodesca. A forma de viver que era a nossa a ser atacada em directo nas televisões de todo mundo.

Nesse início de tarde, lembro-me de estar a acompanhar a emissão da RTP conduzida pela pivô do Jornal da Tarde, a jovem jornalista Andrea Neves. E que bem que ela esteve. Enquanto os outros canais ainda falavam em acidente, naquele canal já se pensava num acto terrorista. Como as coisas, de então para cá, se alteraram também no modo de fazer televisão!

A sensação que mais guardo daquele dia, para além do espanto provocado pelas imagens, tinha a ver com a expectativa do que se poderia passar no momento seguinte. Hoje sabemos a cronologia dos acontecimentos e o raio de alcance dos alvos a atingir. Mas naquela tarde não. Dois mil milhões de telespectadores pensavam em todas as hipóteses possíveis de dimensão bélica. Pois se o centro do mundo político e financeiro estava a ser atacado daquela forma, tudo o resto parecia ser possível.

Desde aquele dia muitas coisas mudaram. De um país detentor maior do poder político passou-se para a disseminação global de zonas de capacidade militar e força económica mutáveis. O mundo tornou-se multipolarizado na possibilidade de novas alianças de interesse estratégico. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos e a Europa não souberam responder aos novos desafios colocados pela globalização.

Agora resta-nos esperar que ainda estejamos a tempo de salvaguardar a cultura e os valores ocidentais face à nova super-potência – a China, claro – e a todas aquelas regiões de domínio emergente. Mas para isso a América terá de actuar em conjunto com a Europa, contando ainda com a união de interesses com países como a Índia, o Japão, o Brasil e continentes como o africano e o australiano. 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Sobre mim


Escrevo tanto sobre os outros e nada sobre mim — o costume entre aqueles que fazem da vida posto de observação da comédia e do drama exterior a eles mesmo. Eu sou o “homem que olha”. Não por inveja ou por despeito. Apenas porque gosto das pessoas. Penso mesmo que elas são a única realidade que verdadeiramente me interessa. E as mulheres de uma forma muito especial. Claro, dizem os leitores que me vão conhecendo. Mas a razão de tal acontecer não é descortinável no divã do psicanalista. Gosto das mulheres de uma forma normal, ausente de qualquer factor patológico. Há quem tenha verdadeira adoração pela pintura, pela música, pela arquitectura ou pela natureza. Eu sinto um profundo fascínio pela feminilidade, no que ela tem de belo, de resistência anímica e de via de acesso a um mundo absolutamente outro. Numa palavra, a mulher é para além de tudo o mais, o colo. 
Mas as minhas paixões também se corporizam noutras áreas da vida: gosto de ler, de escrever e, principalmente, de fazer jornais, sejam eles impressos ou digitais. 
Quanto à forma de ser, sou tímido mas fui toda a vida relações públicas das festas oferecidas pelos meus amigos, sou cínico para aqueles de quem não gosto e ingénuo na abnegação com que trato alguns que mais tarde venho a saber não merecerem, caracterizo-me mais pela imaginação do que pelo fazer e, no entanto, fui desde sempre eleito presidente ou delegado de tudo o que se possa pensar sem nunca ter deixado de ser porteiro dessas organizações.  
Em resumo, sou a maioria das vezes bom tipo. Pelo menos até à altura em que a tristeza toma conta de mim perante a ausência de sentido daquilo que olho.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

De volta à cidade


Chegou Setembro e com ele a volta da rotina dos dias de trabalho. Logo de manhãzinha as portas automáticas do escritório num corrupio para deixarem entrar as pessoas. Muitas vezes atarefadas com coisa nenhuma mas a envergarem o rosto sério de quem está preocupado com os assuntos a tratar. 
Ao meio dia e meia hora do almoço. A comida feita em casa engolida num ápice. De seguida, o banco do jardim a servir para os trabalhadores descansarem as pernas antes de voltarem ao expediente da tarde. 
Entretanto a conversa a fluir indolente. 
— Olhe que comigo o vestido chegou rápido. Foi encomendar num dia e no seguinte estava cá. 
— Pois eu não tenho sorte nenhuma com as compras na internet. Ainda na semana passada a minha filha comprou uma camisola para oferecer ao namorado que fazia anos e… nada, o rapaz ficou sem prenda. 
— Vocês têm a mania que são modernas e depois dá nisto — diz a D. Aida — comprem num hipermercado que é mais rápido e mais barato. Ou então façam como o Sr. Antunes e mandem vir tudo pela Redoute. 
O Sr. Antunes não respondeu. Também já eram horas de voltar ao trabalho e, por isso, levantaram-se e começaram a caminhar. 
O que eles não sabiam é que a tarde ia ser ocupada com uma inspecção surpresa feita pelos senhores doutores vindos de Lisboa.

domingo, 5 de setembro de 2021

Arte urbana em cidade do interior

Nenhum ser humano é um só. Somos o conjunto de diversos momentos e diferentes formas de estar. O que revelamos agora é o contrário do que parecemos ser horas atrás. À noite estamos disponíveis na vontade de agradar, à tarde mostramo-nos carrancudos por fazermos aquilo que detestamos. Por isso é que os artistas que nos querem representar numa escultura ou numa pintura têm dificuldade em traduzir essa variabilidade. Até porque há aqueles cujo pensamento tende para o predomínio lógico ao mesmo tempo que outros são mais próximos da capacidade hermenêutica. Uns a serem assim a vida toda e os restantes apenas no dia a seguir. 
Isto mesmo procuraram reproduzir neste esboço de escultura os artistas Mário Ortega e Miguel Moreira da Silva, sem apoios financeiros de natureza alguma, num trabalho de grande coragem e também de desafio a todos os que ditam as normas de gosto da chamada arte urbana.

sábado, 4 de setembro de 2021

Paulo Rangel


Este é um tema tolerado numa conversa de café mas não num texto escrito. E, no
entanto, é aceite com alguma indiferença na sociedade actual - desde que não entre portas de casa adentro. 
Vem isto a propósito de Paulo Rangel ter assumido esta tarde, num programa de televisão, a sua homossexualidade. Confesso ter ficado surpreendido. Não sabia. Gabo-lhe a coragem de enfrentar velhos fantasmas que ainda povoam a sociedade portuguesa. Pouco tempo depois de ter sido divulgado um vídeo em que Rangel aparece embriagado numa rua de Bruxelas. Protagonizando, deste modo, uma campanha ad hominem em relação à sua identidade de professor universitário, advogado, homem culto. 
Mas o reconhecimento do seu valor enquanto figura cimeira da vida social que por cá vai acontecendo, não retira interesse à questão que há muito gostaria de ver respondida: o número relevante de homens e mulheres homossexuais em Portugal deve-se à libertação ideológica e moral possibilitada pelo 25 de Abril, ou eles sempre existiram em igual escala? De outro modo: é o mimetismo com que vulgarmente somos confrontados — principalmente em meios elitistas como o das televisões, dos fóruns culturais ou das universidades — que dita a leveza dos comportamentos de carácter intímo ou, em alternativa, as pessoas nascem com sua biologia potenciada de tal modo que os percursos opcionais são mais restritos do que pensamos? 
Não sei de forma peremptória responder a isto. Da mesma forma que não sei o que dizer aos que me vão criticar (e muito) por ter a veleidade de fazer perguntas deste tipo.

domingo, 22 de agosto de 2021

Recuperação das cidades antigas


O país, a pouco e pouco, vai ganhando algum discernimento na renovação urbanística dos centros históricos das cidades. Também não era sem tempo, depois de tanta barbaridade cometida, destruindo-se tudo o não representasse a suposta modernidade. 
No casco histórico de Bragança — onde já ninguém queria viver — recupera-se a fachada original das casas e reconverte-se o seu interior com as actuais exigências de conforto. É tão bom, de vez em quando, dizer bem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A escada


Tudo nesta fotografia obedece às leis da proporcionalidade, do equilíbrio, da racionalidade. Uma escada transformada em conceito possível de vida. Desenhada a partir do engenho maior de que o arquitecto se serve: o traço. Sortilégio muito difícil de atingir. Exige treino e talento. É exactamente aqui que a mundialmente conhecida Escola do Porto se distingue. Com os mestres a dizerem que não sabem desenhar. Nem precisam. Basta-lhes saberem conceptualizar a vida a partir de uma perspectiva própria. Afirmando-a na firmeza do risco que traduz a infinitude do espaço e da vida. Ao contrário do que acha o indivíduo que desce a escada e não vê saídas para os problemas que o consomem. É a luta já estafada da religiosidade contra a dialéctica histórica.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Verão de 2021 (Férias Instagram)


Num passado mais ou menos recente não havia que enganar: as famílias iam um mês inteiro para o Algarve nas férias. E choravam baba e ranho na altura de abalar. Para trás ficavam os amores de Verão, a D. Mariazinha e o Dr. Lourenço, o peixe fresco do Tomé e o pôr-do-sol na esplanada do Café Américo. 

Hoje as coisas não funcionam assim. As férias Instagram vivem das fotografias feitas em cenários diferentes entre si. O que passa a importar é a imagem dos dias. 

Os corpos, esses, são o centro de tudo. Vestem biquínis de padrões diversos e corte obstinadamente reduzido. E são avaliados conforme o número de likes naquela rede social.

Mas não é fácil competir neste campeonato. As concorrentes são em grande número e com atributos assinaláveis. De tal forma que a perseverança na modelagem física torna-se condição imprescindível. É ver as mulheres Instagram a trabalharem o ano todo nos ginásios os corpos suados de tanto esforço. 

Nesta disputa entram todos. Muitas das vezes são os próprios pais que fotografam as filhas adolescentes em poses de mulher sobejamente vivida. É a ditadura dos likes em acção. A fazer lembrar as batalhas colossais em que se envolviam as famílias do Alto Minho para que as descendentes casadoiras figurassem no cartaz da romaria.  

Nos dias de hoje a imagem Instagram tornou-se o verdadeiro desporto nacional. Por isso é que o cenário da mesma praia durante todo o mês de Agosto não favorece a arregimentação dos ansiados likes. O ideal é, por exemplo, as famílias calcorrearem durante quinze dias os percursos pedestres do Vietnam, fundearem uma semana sob o sol da Ilha de Capri e dedicarem mais três a quatro dias a fotografarem-se exaustos, mas sorridentes, nas ruas de Istambul. 

Depois, depois… é irem descansar para a aldeia, mas desta vez sem câmaras fotográficas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Os 35 anos da filha da Carolina do Mónaco


Se há mulher que desde muito cedo me impressionou, ela foi, sem dúvida, a Carolina do Mónaco. Talvez pelo ar um pouco triste, como que a pedir protecção, que se adivinhava por detrás daqueles olhos grandes fotografados por todas as revistas durante várias décadas.  
A filha, Charlotte, fez no dia três deste mês, trinta e cinco anos de idade. Deixou-me pasmado saber este número. O tempo tem mau feitio, não há dúvida. 
Mas há outro pormenor que me chamou a atenção: para além da parecença óbvia com a mãe, a permanência do olhar ensimesmado e aparentemente tímido com que ambas fitam o redor delas — o que também se percebia na avó Grace. 
“É bonita”, disse o Sr. Armando, empregado do café que, familiarizado com a minha presença naquele espaço, olhou para a fotografia da Charlotte e quis participar nos meus pensamentos. 
“Bonita a filha da Carolina?” — olhei uma vez mais para ela. Quem me conhece sabe bem que o conceito de beleza não faz parte da semiótica que utilizo para classificar as pessoas. Mas talvez o Sr. Armando tenha razão. 
De qualquer forma, o que realmente me deixou abespinhado em tudo isto é a velocidade com que o mundo gira: a Charlotte tem trinta e cinco anos, o Obama sessenta, o Springsteen setenta e um e a Teodora Cardoso cento e três. E eu próprio já me senti melhor.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Primeiros dias de Agosto


As esplanadas da Foz servem muitas das vezes como barómetro do ambiente social ou económico que se vive em determinada época do Porto. Bem sei que nos últimos dias o tempo tem estado nublado com algum vento à mistura. Mas a cara das pessoas não mente – a alegria que por ali fazia-se sentir nestes primeiros dias de Agosto, bem antes desta maldita pandemia, parece ter rumado a outras paragens. Está tudo demasiadamente bem-comportado. Parecem, perdoe-se-nos algum exagero, as termas – e as avós e as netas que as frequentavam – descritas pela genialidade do Camilo Castelo Branco.

Os casais conversam, os vestidos desfilam e os jovens esperam. O que vale é a música do disc-jockey não se importar com nada disto nem as ondas do mar que vão e vêm impávidas. 

A Covid-19 bateu mesmo forte nesta cidade.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Glória a Deus


E já lá vão quase cinco anos que conheci a Lúcia de Jesus, o meu milésimo quinquagésimo sétimo grande amor. Mulher inteligente, operosa no trabalho e na devoção ao divino, leitora assídua do Observador e do Público, ela corresponde ao perfil que os homens procuram às vezes uma vida toda sem nunca encontrar. 
E, havia de ser eu, o sortudo que lhe arrebanhou o coração! Quando à noite estamos juntos no leito abençoado pelo Papa Bento XVI, a Lúcia de Jesus faz-me ver no esgar dos momentos últimos o inferno e o céu. 
E depois tem aquela qualidade que hoje é considerada pela comunidade pós-moderna a mais importante numa mulher — a de ser feia q. b. Quando os meus amigos do Centro Hípico do Estoril a caracterizaram assim, num jantar de homenagem à raça lusitana, enchi-me de uma vaidade tão grande que não me lembro de outra igual. 
Obrigado Lúcia de Jesus da Purificação dos Santos pela vida celestial que me tens proporcionado.

domingo, 18 de julho de 2021

Considerações avulsas sobre o amor


No princípio dos tempos os homens e as mulheres viviam livres e felizes. Nenhum sentimento de difícil adesão os condicionava. Até que, de forma insidiosa, silenciosa, traiçoeira até, aparece o amor. A partir desse momento nada permaneceu igual na relação dos indivíduos consigo próprios nem com os outros.
O amor é tão esquivo que não tem definição possível. É algo que nos consome cá dentro, nos condiciona a olhar para o mundo de modo próprio. Deixamos de ser donos de nós mesmos, passamos a depender de outrem, ansiosos para lhe agradar e angustiados com o medo de nos enxotar como cão a querer entrar no lar.
Transforma-nos numa triste máscara daquilo que já fomos e, vezes demais, abeiramo-nos do precipício que nos aproxima do ridículo.
Mas então aquela sensação boa que transportávamos connosco no fim das férias do Algarve, quando éramos adolescentes, deve ser reprimida e, se possível, obscurecida na memória? Não, por uma razão simples: o amor não é isto, a este sentir pode associar-se a transitoriedade, a intensidade limitada pelo tempo. 
Para que não haja confusão possível: a esta dor difusa chama-se paixão e deve ser autorizada na vida do ser humano. Contribui para o acrescento da felicidade pessoal sem que dela resulte a fissura irreparável na nossa vida. Não nos limita antes acrescenta. Já no amor nem o tempo nem a forma de estar garantem qualquer desfecho que seja.
Maldito seja aquele que se lembrou de criar o amor. Se ele não existisse desfrutávamos, sem ponta de remorso, do homem ou da mulher que nos apetecesse preencher num abraço sentido. Hoje, amanhã outra pessoa, no ano seguinte alguém de quem sentimos saudade daquele Verão. Livres e felizes. Sem consulta semanal marcada no psicanalista.
Eu quero a paixão não quero o amor.

sábado, 26 de junho de 2021

Dupond e Dupont


Ao que este país chegou! Dupond e Dupont a ocuparem os dois mais altos cargos da nação. Marcelo, presidente da república, afiança dias antes de a variante delta se tornar prevalente em Portugal, que com ele não haverá nunca recuo no processo de desconfinamento. Ferro Rodrigues, presidente da assembleia da república, entusiasmado com o empate sobre a França incentiva os portugueses a invadirem este domingo Sevilha para assistirem a mais um jogo da selecção. Isto num momento em que Sevilha é classificada como zona a evitar considerando os índices de transmissibilidade da covid que ali se fazem sentir. Mais tarde, avisado da asneira em que se meteu, o número dois do regime diz que quem tratou de tudo foi o número um, que ele é que sabe de todas as coisas. 
E o país a ser governado por tontos desta espécie. 

Foto: maisfutebol 

terça-feira, 8 de junho de 2021

O dedo em riste


— Vamos lá esclarecer uma coisa: se vens para o Paraíso, lugar de eleição criado por Deus, limar as unhas, a porta de saída é já ali. O caminho que deverás então  percorrer fica em frente. Quando encontrares uma avenida pejada de suvs da Porsche e da Mercedes e prédios com arremedos de varandas, terás chegado finalmente ao teu destino.