quinta-feira, 20 de junho de 2019

Cinema ao ar livre


Ontem à noite fui ao cinema. Ao ar livre. Num espaço desenhado a pensar numa esplanada, mas que pode ser adaptado a muitas outras coisas. Palestras, exposições, desfiles por exemplo. Ou então à projecção de filmes. 

E é aqui que entra a diferença do traço transformado em arquitectura. Da célebre escola do Porto. De Eduardo Souto de Moura, neste caso. 

Fazendo de um quintal de uma casa um sítio lindo de estar, de ver, de namorar, de pensar. 

E de assistir na tela à Natalie Portman a vergar-se em respeitosa homenagem ao escritor israelita Amos Oz. 

Num filme de grande intensidade dramática. Envolvido pelas linhas de um traço só de Souto Moura. Soberbo. Tudo. 

De tal forma que ao olhar-me na tela houve em mim um arremedo que só pode ser cómico de uma epifania: a de só agora estar preparado em termos de vida para ser escritor. 

Demasiado tarde. Muito tarde. Mas não para ir à discoteca ver dançar a noite toda outra vez no éter do cinema. Pensei eu ao mesmo tempo que me dirigia rua acima ao sítio onde as mulheres dançam.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Médica bonita


Eu sei que por muitos sou abominado pela importância que dou à beleza, mas é mais forte do que eu. Se se comparar o sentimento estético que me suscita um jardim, uma montanha, um automóvel, uma escultura, uma igreja, com aquela outra realidade que é uma mulher nas ruas de Florença, escusado será dizer que prefiro o ser que desfila determinado, com um vestido de uma cor que depressa se extingue na memória, na cidade que é cinema vivo. 
Por várias vezes, às médicas bonitas que atendem no consultório sujeitos fragilizados pela doença, não resisto em perguntar-lhes se o rosto de anjo que as distingue não atrapalha o exercício profissional. 
Nunca me souberam verdadeiramente responder. 
A rapariga que posou para a máquina fotográfica na tarde de Sábado passado é também médica. Sim, a da imagem junta. É médica e psiquiatra. Portuguesa de gema. 
Olho a fotografia e vem-me à ideia que o doente que a consultar das duas uma: ou fica curado de vez na certeza de que a vida é bela ou, então, cai fulminado pela clarividência de que Deus o quis castigar a vida toda e que está ali à sua frente a prova da fealdade de tudo o que sempre o rodeou. 
Coitado dele. E de mim.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A sociedade portuguesa actual e a da idade média

Acabo de chegar ao meu segundo escritório, o da esplanada, e com que é que deparo? Com uma jovem eslava solitária por culpa de um feriado nacional que não compreende. Os ouvidos a acompanharem Liszt nas suas deambulações pelo mundo dos sons, os olhos fixos no computador (pelo menos até eu aparecer). Está a escrever a tese de doutoramento com o título “A Sociedade Portuguesa no Século XXI - Análise sobre a permanência da Idade Média no tempo actual”. Pela minha cara viu que não gostei muito do tema. Disse-me que que como homem inteligente (como é que ela percebeu tão rapidamente?!) deveria pensar seriamente no assunto. “A Madonna tem razão”, atirou-me em jeito de provocação. Por essa altura já eu pensava como fazer para esganar uma rapariga bielo-russa. Mas depois lembrei-me de muitas coisas: dos servos da gleba, dos senhores feudais, da quase impossibilidade de mobilidade social, do engajamento a um só perfil cultural, dos círculos de poder de admissão exclusiva, e lembrei-me da sociedade portuguesa contemporânea. De Lisboa e de Pampilhosa da Serra, de Marcelo e da Cristas, do Carlos César e do André Silva, da SIC e do Banco de Portugal, da Santa Casa da Misericórdia e do Banco Alimentar Contra a Fome, do aumento do ordenado dos juizes e da crise dos professores — e milagrosamente a rapariga loura tornou-se cada vez cada vez mais interessante. 
Perguntei-lhe se sabia como era o namoro na idade das trevas, ela disse-me que só estava em Portugal há duas semanas. 
Levei-a a uma festa de BDSM e bondage. 

terça-feira, 4 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís (II)


Agora que Agustina está a regressar às origens, não posso deixar de contar uma história que ela partilhou entre amigos (pode ser que esclareça alguma coisa da sua personalidade). 
Um dia a escritora deslocou-se, no mais esforçado anonimato, à casa de uma candidata a empregada doméstica da sua residência no Porto. Para grande surpresa da Agustina em cima da mesa da sala de jantar estava o livro Sibila. Perguntou à rapariga:”Então, está a gostar de ler?” A resposta não podia ser mais franca: “Ui! Nem me fale: é uma seca monumental. Não sei mais o que hei-de fazer com o livro”. 
A escritora veio então a saber que a candidata estava a estudá-lo na escola no horário nocturno — de dia criada, à noite aluna do secundário. 
Escusado será dizer, para quem conhece a autora de Sibila, que a contratou para trabalhar lá em casa.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís (I)


Era uma mulher sem tempo, corajosa, frontal, sempre com a ironia pronta a desferir o golpe fatal na soberba dos outros. Grande, muito grande mulher e escritora. Capaz de publicar um anúncio no Primeiro de Janeiro para arranjar marido. Ou de escolher a direita para dela fazer bandeira política numa época em que era obrigatório ser de esquerda. E depois a escrita. Pensada palavra por palavra até ser pesada, acariciada, ouvida a tarde inteira na casa da família em Massarelos. 
É a primeira grande escritora de romance a entrar na história maior da literatura portuguesa. Fez o mundo como quis. Teimosa e doce ao mesmo tempo. Mas disso só sabe com propriedade aquele que foi o amor de toda a vida: o seu marido Alberto Oliveira Luís.