terça-feira, 30 de abril de 2019

Desalmadamente Lena D'Água




Meu Deus, Nosso Senhor: não se faz uma coisa destas — a passagem do tempo deveria acontecer apenas com aqueles que têm pressa de se irem embora e não com aqueles que querem ficar. Que gostam do sol logo pela manhã e da voz da multidão a caminho do trabalho. 

Permanecendo, se possível, eternamente bonitos; ou então jovens; ou então saudáveis, o que vem a dar mais ou menos no mesmo. 

Mas o tempo é um carrasco difícil de moldar — faz estragos, mata devagarinho. 

Já escrevi diversas vezes sobre o tempo (e também acerca do que permanece para além da mudança).

Hoje vi fotografias antigas e outras actuais de uma das mulheres-sonho da minha juventude: a Lena D’Água. 

A cantora de Sempre que o Amor me Quiser era absolutamente linda. Filha de um pai e de uma mãe também eles belíssimos, a Lena não precisava de maquilhagem ou de roupas muito elaboradas. Ela era naturalmente desejo dos homens e de algumas mulheres. 

Infelizmente, tal como a muitos de nós, a vida foi-lhe madrasta. Por culpa dela e dos outros. 

Do tempo que percorreu na noite e na vertigem de si própria ficaram-lhe as marcas. Na carreira, no pensamento e no corpo. Do rosto luminoso e das pernas de boneca já pouco resta. Nos olhos e no riso, talvez. No resto, a Lena D’Água de hoje mais não é do que a longínqua imagem de uma cantora portuguesa de muito sucesso dos anos oitenta. 

A menos que consiga recomeçar. Como se fosse do zero. Esquecendo o bom e o mau de tudo o que ficou para trás, de forma a não ter de penosamente comparar-se com o que já foi. 

A oportunidade está aí: trinta anos depois vai editar um novo álbum com o nome Desalmadamente. Quando o ouvirmos vamos imaginá-lo cantado por alguém que não se distingue pelas pernas ou pela beleza do rosto, mas antes pelo percurso e pela consciência que só uma vida cheia permite. 

No dia 10 de Maio, quando desalmadamente for divulgado o disco, eu vou amar outra vez a Lena D’Água.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Tarde em Moledo


A cena presenciei-a mesmo a meu lado no Domingo passado. Eu e a Cuca finalmente esparramados ao sol, ninguém a aborrecer-nos. Ao fundo a vista linda de Moledo, a areia solidária a querer-nos felizes, o Forte no meio do mar a tomar conta de nós, o monte de Santa Tecla a mostrar-nos o caminho em direcção ao divino. Como se ele não estivesse ao nosso lados nas migalhas de rocha em que nos deitamos, e em tudo o resto a que chamamos natureza e que os homens ainda não souberam como estragar. 
A alguma distância de mim e da Cuca, um casal antigo no tempo mas igualmente feliz na cumplicidade de amor, sorria para nós como se pudéssemos compreender aquilo que ambos sentiam. Da mesma forma que eles nos adivinhavam, pareciam querer dizer. 
Até que chegou a desgraçada de uma víbora muito má travestida de mulher. Sentou-se perto do casal mais velho e devagar, muito devagar, começou a tirar cada uma das peças do seu vestuário escolhido de forma a fazer jus ao sol de Moledo. O soutien não constava do corpo da bruxa, mas dos seios redondos (da forma das minhas mãos), arrogantes de tão confiantes em si, não se tinha ela esquecido. 
Foi então que vi uma das cenas de amor mais bonitas dos últimos tempos: a mulher velha, preocupada com a interrupção do descanso do marido, tapou num ápice os olhos do companheiro com o pedaço de crochê que fazia desde que chegou à praia. 
Foi lindo. Cheguei mesmo a emocionar-me. Eu e a Cuca — que depressa aprendeu como se faz e pespegou à frente da minha imaginação a capa do seu último disco de vinil. 
Sorri contente de tanto amor. Um dia destes a bruxa má vai fazer-me a mesma coisa. Vocês vão ver.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Quando a coerência é um mal


Não fui eu o autor deste sublinhado fotográfico — esse bom gosto deve-se à Diana Duarte, jornalista da SIC. 
Mas gosto muito do que na página do livro está escrito. Não há nada mais aborrecido que alguém de uma só cara. Que é constante no vestir e no dizer. E na escrita. E no gosto pelas mulheres louras; ou então, sendo do género feminino, preferindo os homens das contas certas. 
Eu não sou assim. Hoje sou o homem do comboio, amanhã sou escritor por publicar. Isto de manhã e à tarde, porque à noite sou milionário que o deixei de ser por causa da guerra civil no Ruanda. 
A vida é cinema e os chatos são porteiros e vendem os bilhetes do espectáculo. Que, por sinal, nunca terá um fim. 

sábado, 13 de abril de 2019

Mulher para as caminhadas


Seis indivíduos de bata branca, 
estetoscópio ao pescoço, proferiram o veredicto: “Tem de andar meia hora por dia”. Era a quinquagésima sétima vez que o diziam, sem nunca eu ter conseguido cumprir a malfadada sentença. As ruas sempre as mesmas, o suor a querer desaguar nos olhos, a figura de parvo a tomar conta de mim. 
“Vai ter de arranjar companhia”, vaticinaram os lentes da faculdade de medicina. Companhia?Mas qual? Um homem de bigode e cheiro de pés, sempre a divagar sobre futebol?
Não, não... fiz algumas asneiras, mas não mereço tamanho castigo. Uma mulher? Para quê? Para andar?Mal empregada musa da minha vida.  E qual havia de ser?  A Dona Lurdinhas não quero,  já chega o gabinete mais os clientes. Tem de ser mais viçosa e inexperiente, o corpo a cheirar ao perfume das raparigas dos bailes de quando eu tinha quinze anos. 
Loura, sim, quase a parecer morena, olhos pretos que eu gosto muito das ruivas. Sorriso obediente sem ser submissa, que eu nunca quis mulheres dependentes do carro ou do meu filósofo preferido ou ainda do porta-moedas Gucci. 
O cabelo escorrido e sempre impecável, a pedir para ser cofiado pelos dedos deste novel atleta. Há só mais uma condição e esta irrecusável: A de não falar enquanto caminha. Nem que seja sobre a desvalorização do euro, do Brexit ou do mau-gosto do vestido da vizinha. A única coisa que pode dizer é “Ai Jesus” ou “Ai, meu senhor”. 
Vou pôr o anúncio no Correio da Tarde. 
A ver se desta vez começo a andar pelos jardins e ruas à beira-rio da minha cidade.