Meu Deus, Nosso Senhor: não se faz uma coisa destas — a passagem do tempo deveria acontecer apenas com aqueles que têm pressa de se irem embora e não com aqueles que querem ficar. Que gostam do sol logo pela manhã e da voz da multidão a caminho do trabalho.
Permanecendo, se possível, eternamente bonitos; ou então jovens; ou então saudáveis, o que vem a dar mais ou menos no mesmo.
Mas o tempo é um carrasco difícil de moldar — faz estragos, mata devagarinho.
Já escrevi diversas vezes sobre o tempo (e também acerca do que permanece para além da mudança).
Hoje vi fotografias antigas e outras actuais de uma das mulheres-sonho da minha juventude: a Lena D’Água.
A cantora de Sempre que o Amor me Quiser era absolutamente linda. Filha de um pai e de uma mãe também eles belíssimos, a Lena não precisava de maquilhagem ou de roupas muito elaboradas. Ela era naturalmente desejo dos homens e de algumas mulheres.
Infelizmente, tal como a muitos de nós, a vida foi-lhe madrasta. Por culpa dela e dos outros.
Do tempo que percorreu na noite e na vertigem de si própria ficaram-lhe as marcas. Na carreira, no pensamento e no corpo. Do rosto luminoso e das pernas de boneca já pouco resta. Nos olhos e no riso, talvez. No resto, a Lena D’Água de hoje mais não é do que a longínqua imagem de uma cantora portuguesa de muito sucesso dos anos oitenta.
A menos que consiga recomeçar. Como se fosse do zero. Esquecendo o bom e o mau de tudo o que ficou para trás, de forma a não ter de penosamente comparar-se com o que já foi.
A oportunidade está aí: trinta anos depois vai editar um novo álbum com o nome Desalmadamente. Quando o ouvirmos vamos imaginá-lo cantado por alguém que não se distingue pelas pernas ou pela beleza do rosto, mas antes pelo percurso e pela consciência que só uma vida cheia permite.
No dia 10 de Maio, quando desalmadamente for divulgado o disco, eu vou amar outra vez a Lena D’Água.