sexta-feira, 26 de maio de 2023

No primeiro aniversário da morte do meu Pai


Dia de escrever com o meu pai no escritório da Casa da Pata, onde eu nasci. “Pai, hoje vamos falar de quê?”. “Vamos falar dos dois, de mim e do Serginho que tem uma vida toda pela frente”.

Na altura não percebi. Para mim o meu pai viveria para sempre, pelo menos tanto quanto eu. Mas não disse nada. Era preciso escrever com urgência, os leitores estavam por certo à espera. 

“Pai, eu quero viver contigo, com a mãe e com o Rogério”, não resisti em dizer. O meu pai olhou para mim, sorriu e não disse nada. 

Folheou o velho álbum de fotografias e pegou numa. Era ele a passear com um amigo numa rua do Rio de Janeiro, à noite, tinha dezasseis ou dezassete anos, os dois a imitarem o Visconde de Valmont e o Don Juan. Mas sobre isso ainda eu não sabia nada. 

* * *

 

“Vamos então ser, uma vez mais, escritores. Olhando para o rosto deste dois solitários rapazes, o que vês, Serginho?”, perguntou-me. “Sonho, vontade de chegarem a um sítio que não conheço”, disse num ápice, quase sem pensar. 

“É isso mesmo, para quem como o teu pai havia chegado há pouco tempo de Viana, sozinho num navio grande, a cidade do Rio de Janeiro apresentava-se como um mundo novo”.

A maioria das coisas que ele me dizia eu não entendia, mas, ainda assim, gostava daqueles dias de escrita na Casa da Pata. 

“Vamos lá então começar, anunciou o meu pai:

À noite, às ruas eram palmilhadas por aqueles que procuravam nos botequins e outros estaminés a vontade de matarem o desejo de carinho, nem que fosse apenas de alguma atenção.”

(…)

***

“Serginho, faz hoje um ano que recomecei essa viagem iniciada por volta dos meus dezasseis anos. Naquela altura descobri um mundo novo e um miúdo que eu próprio desconhecia. 

Interrompi esse devaneio para vos amar e ajudar a criar um grupo novo de pessoas capazes de prosseguirem o caminho. Esse grupo é coeso, tem gente de valor, já ninguém tem razões para se perder no percurso. 

Chegou, por isso, a altura de recomeçar a viagem. Estou neste momento nas esplanadas de Guanabara a olhar para ti, meu filho. Domingo vou a Istambul ver como as coisas correm depois das eleições. 

Mas sempre atento à tua vida. Pronto para actuar se necessário for. Embora acreditando sem hesitação em ti. 

Os escritores sabem quase sempre tudo. 

Um beijinho do teu pai."

 

(No dia do primeiro aniversário do passamento de Matias de Barros)

 

sábado, 20 de maio de 2023

O pedido da D. Lurdinhas


Há dias que a D. Lurdinhas anda a falar nisto, não sei onde foi buscar a ideia, porventura às telenovelas que passam na televisão portuguesa. “Se o doutor não se importasse, gostava de passar a ser tratada de chefe de gabinete em vez de, simplesmente, gerente” – o rosto dela sério e constrangido a olhar para mim, sinal de que era coisa séria o pedido.
Anuí. Afinal, como poderia dizer que não a um pedido daquela mulher-santa que surgiu na vida deste vosso amigo? Ficou tão contente que os braços logo rodearam o meu pescoço e deu-me um furtivo beijo na face. Quase me emocionei.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Ser escritor


Sempre achei que escrever bem é o exercício criativo mais difícil de todos. Não estou a falar de juntar letras numa folha de papel com um recado para alguém. É mesmo da arte nascida da adesão de ideias a palavras, ao som que elas produzem no fim da frase, à reflexão que provocam em nós, à imagem de cada um refletida no texto (mesmo que recusada), ao ato da procura ansiosa do desenlace da história que lemos – isso sim, escrever bem é isto.

Mas aqui reside a dificuldade daquilo que dizíamos. Por isso é que fazer de uma ideia, de uma metáfora, por exemplo, o dilema que conhecemos bem de o termos vivido já sem nunca o termos resolvido, contado em poucas palavras, sem grandes arranjos florais, com palavras fáceis, não está ao alcance de todos. Por isso é que não é escritor quem simplesmente o quer ser.

Na maioria das vezes pressupõe um jeito que não se explica, associado à técnica aprendida à custa do treino incessante da escrita, mas, além disso, ao olhar perscrutador confundido com voyeurismo, à solidão impraticável para o homem comum, à desordem emotiva com que vive algumas situações.

Neste dois últimos meses tive o privilégio de ouvir do escritor João Tordo, numa sequência programada, alguns dos segredos da produção literária. Li textos escolhidos por ele, discutimo-los, acompanhei a dificuldade da escrita ficcional.

Garanto-vos que se desde criança promovi em mim o defeito de endeusar os escritores, depois deste tempo de estudo fiquei a admirá-los ainda mais. Preciso urgentemente de alcançar a simplicidade que é traço aparentemente inacessível na escrita daqueles homens e mulheres.


Na foto: o escritor Javier Marias no escritório da sua casa.