domingo, 28 de abril de 2013

"Este País não é para velhos"


Uma mulher velha tentava ao balcão da farmácia iludir a realidade. "O médico disse-me que o número de glóbulos vermelhos estava bem". A funcionária jovem expressava-se numa voz firme e ao mesmo tempo suave. "Estes comprimidos só pode tomá-los depois de comer alguma coisa!". "Mas eu não tenho apetite", lamuriava-se a mulher doente ao mesmo tempo que imprimia pequenos ziguezagues na postura do corpo na tentativa de esconder-se de mim que assistia à cena.

A cara da menina saudável de bata branca ia ficando mais severa. "Mas não toma o pequeno-almoço?” insistia a recém-formada farmacêutica. O corpo da mulher doente e o balcão eram já um só, tão colados estavam um ao outro. " Não", consegui decifrar a partir de um esgar esforçado de voz sumida.

Vim-me embora nesse momento porque já tinha sido aviado no meu pedido de cliente e porque não queria perturbar mais a intimidade reclamada por aquela mulher que se recusava a assumir a anemia que a natureza má lhe impôs.

Este país não é para velhos nem para aqueles que um dia também o vão ser, pensava eu enquanto entrava no carro. Nunca vou querer anemias nem pequenos-almoços por servir. O noticiário no rádio do carro entretanto fazia-se anunciar através do jingle estafado de tanto tocar.

Foto: Margherita Vitagliano

João Tordo


Ainda sou do tempo em que os escritores se endeusavam a si próprios. Embora fingissem não o fazer de propósito. Frequentavam as livrarias e os cafés dos outros mas não se misturavam. À volta deles havia como que uma áurea diferenciadora do comum dos mortais. Assinavam os livros com uma condescendência sacrificada. Olhavam as pessoas com a bonomia própria de quem reconhece que nem todos podem ser iguais.

Noutro dia conheci o João Tordo. Que diferença! Foi como se privasse com ele há muito tempo. Simpático, sedutor nato, experiente na vida e no mundo real (como não poderia deixar de ser uma vez que é escritor), capaz de partilhar de forma genuína o interesse e a proximidade que sente pelos outros, sejam eles quem forem.


É, provavelmente, o mais democrático dos escritores que tenho conhecido. E a verdade é que João Tordo tem tudo para, também ele, se alcandorar a um plano superior ao da vulgaridade de alguma escrita literária que por aí se faz. Tanto sob o ponto de vista formal, em que é de um rigor assinalável, como no domínio do enredo e das personagens a quem sabe transmitir um interesse crescente, ele integra por mérito próprio um grupo muito restrito de novos valores do panorama cultural português.

A diferença está no facto de perceber, porque é boa pessoa, porque gosta dos homens e, principalmente, das mulheres, que a arte da escrita necessita da normalidade traduzível em páginas admiráveis que só os grandes escritores sabem produzir.