domingo, 1 de dezembro de 2013

De língua de fora


Nunca gostei de ginásios, de suor, de runnings, de desporto. Sempre gostei mais de ver do que fazer. Em tudo o que se mova. Ultimamente as coisas tiveram que mudar: aos poucos e poucos fui impelido por todos a fazer umas caminhadas. Uma tortura. Ando de vez em quando mas detesto. O ar a faltar e a esplanada sem mim. Já me sinto cansado só de pensar nisto.

Ontem andei mais uns quilómetros. A necessidade de ser bonito a isso me obriga. O fato Zegna merece um dono como deve ser. Só mais um bocado. Já só faltam seis quilómetros. A esplanada ao dobrar da esquina. E eu a suar e a andar. Foi nisto que apareceu ao meu lado um rafeiro em forma de cão com pêlo longo e sujo e língua de fora. A língua de fora reconheci-a eu de algum lado. O resto do retrato – eu e mania dos retratos – também me era familiar. A verdade é que desde sempre atraio os cães. Vêm todos ter comigo. Parecem conhecer-me, confiar em mim. Nunca percebi porquê. Talvez por, tal como eles, achar que os outros todos os conheço há muito tempo. Que faço parte da vida deles. Que não precisamos de ser apresentados. Engano meu tantas vezes arrependido.

E o rafeiro de porte pequeno a andar o tempo todo ao pé de mim. Contente, notava-se. A língua de fora e o fumo do calor a sair da boca. E a rir. Eu sei. Fez-me lembrar um outro que há muito tempo também caminhava repetindo os meus passos. Por um instante traiçoeiro saiu do passeio e foi cheirar a rua. Veio um carro e matou-o. Ali à minha beira. Nunca mais recuperei de vez daquilo.

O cão pequeno de língua de fora olhava para mim e para a relva do jardim. Parecia orgulhoso do novo amigo. E a esplanada à minha espera. É tempo de parar. A casa veio ter comigo. Abri a porta, entrei. Olhei para trás. Lá estava ele sentado no passeio a ver-me. Olhei melhor. Sim, o rafeiro estava mais magro. Ao contrário de mim.

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