quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O dia em que rachei a cabeça na Assembleia da República



Logo a mim que não faço mal a ninguém se não puder. Tinha acabado de dar como exemplo dos conhecimentos básicos a exigir aos deputados da próxima legislatura o posicionamento crítico acerca das obras musicais de Jorge Peixinho e de Graciano Saga. Da provocação resultou a concordância de quase ninguém e a recusa do hemiciclo todo. Era o que pretendia. Estava por isso contente comigo mesmo. O dia corria-me bem. Uma manhã de sol branco de Lisboa, as pernas de seda preta a desfilarem em frente à Bénard e eu sentado na esplanada acompanhado de ninguém. Uma maravilha!

À tarde seguiu-se a tal prelecção sobre as qualidades a serem consideradas nos parlamentares de Outubro próximo. O edifício da Assembleia a servir-me de cenário ao acerto da postura de quase cientista político. Logo depois, os corredores, os passos perdidos, as escadas, as muitas escadas e, catrapuz! – cabeça rachada e algum sangue a escorrer-me pela testa.

Lá se foi o sol branco mais a passerelle da Bénard! De repente estava a andar às voltas num carrossel. E os altifalantes a anunciar a próxima paragem: gabinete médico da assembleia.

Voltei a percorrer os corredores agora em direcção à minha possibilidade de salvação. Pelo caminho as pessoas olhavam-me com cara de deputados. As manas Mortágua quase deram um grito. É do BES – dizia a Mariana. É nada, respondeu a Joana – é um latifundiário que não aceitou entregar as terras. Um pouco mais adiante estava, anafado e orgulhoso de si mesmo, o parlamentar do CDS Raúl Almeida e as suas suíças bem aparadas a mostrarem o palácio a um grupo de meninos de um colégio bem. De repente viu-me e juro-vos que gritou para dentro - eu ainda ouvi - "Outro 25 de Abril !?"

Já dentro do espaço branco do gabinete com maca e enfermeira respirei de alívio. Nem mais um deputado nem mais um passo perdido. Comecei a recuperar a esplanada da manhã. Por pouco tempo. Até ter chegado em meu socorro a primeira directora. “Entre senhora doutora, está aqui o nosso doente.”, disse aquela que mais tarde viria a saber ser uma mulher e uma enfermeira excepcionais. E pronto. Adeus Bénard, sol branco, Peixinho e Saga, e eu próprio.

Primeiro, os sapatos de salto alto pretos a completarem as meias de comungar, depois o vestido a tentar cobrir as pernas sem fim ao mesmo tempo que, por esquecimento do costureiro, certamente, revelava num círculo sem tecido a pele abaixo do peito. Quanto ao cabelo, já sabem como é, cabelo e penteado de directora. O rosto, esse, estão a ver o da doutora Assunção Esteves? Não tem nada a ver. Era absolutamente lindo.

Então, o que lhe aconteceu? “Já não me lembrava que as directoras eram assim”, respondi-lhe. Sorriu. Do lanho na testa não me lembrei mais. Até que chegaram mais funcionárias, e directoras, e a mulher-polícia da entrada da Assembleia da República. E agora, quem o vai levar ao hospital?

Foi aí que que eu conheci o outro lado do parlamento nacional. Formou-se ali um grupo de pessoas fantásticas e amigas. Todas se ofereceram para me transportar até ao centro de negócios da saúde mais próximo – o da CUF. Isto num dia de trânsito insuportável com a greve do metro.

Enquanto caminhávamos em passo lento para o exterior do edifício, corria num sprint desenfreado por entre aquela gente a fama que há muito me persegue: a de que vejo para além do rosto das pessoas e lhes adivinho o futuro. Uma desgraça! E eu ali, sem a minha proverbial D. Lurdinhas, que é quem gere o meu gabinete e a vez das clientes. A mulher-polícia, essa, estava desesperada. Já me contava os últimos quatro meses da vida dela que não foram fáceis. Sorte a minha que a deputada Isabel Moreira, que decididamente “gosta de homens que gostam de mulheres”, muito bem vestida naquele dia, e de conversa fugaz no grupo, tinha mais que fazer. Logo ela que é toda dada a devaneios aparentemente esotéricos…

De uma coisa fiquei certo: é bom trabalhar na assembleia com um grupo daqueles. Digo mais: é melhor que no Pingo Doce, na Primark, na Siderurgia Nacional ou mesmo na sociedade de advogados Cuatrecasas.

No hospital fui atendido por uma médica muito jovem. Disse-lhe que deixasse o namorado juiz e levei cinco pontos na testa. À noite dormi no 8º andar de um hotel com uma vista única sobre Lisboa. E sabem quem pagou a estadia? O caríssimo leitor que neste momento está a passar os olhos por estas linhas.

Ah! Já me esquecia! Falta dizer o que esteve na origem de tudo isto. Quando eu ia a utilizar as escadas do parlamento para ir dali para fora, estava nesse momento a descê-las o deputado Carlos Abreu Amorim. Quando me viu, sabendo que nasci na cidade capital do Alto-Minho, caminhou num passo mais rápido em minha direcção para anunciar as novidades dos Estaleiros Navais de Viana. Mais navios, mais trabalhadores e mais peso em cima de mim: o do ilustre parlamentar que acabava de assentar arraiais em cima do meu corpo estendido no chão.

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