O tempo
e os meus calções cresceram. Obedeceram ao movimento da vida. O carrossel não parou
e passei a assinar cheques e a usar gravata. E a lembrar-me.
Este
fim de semana fui a casa dos meus pais. Vi o álbum de fotografias dos calções.
De quando a memória tinha um suporte material. Hoje, com os telemóveis, nada
fica. Sobra o Facebook e a nuvem que guardam o passado até um dia.
Entre
as diversas fotografias esta chamou-me a atenção. Fixei-a na memória com a
ajuda do telemóvel. Por isso é que a nitidez não é a melhor. Mas dá para
reconhecer: eu de calções, a minha mãe, o meu irmão e uma senhora velha que na
altura era tão-só um dos ícones nacionais. Rosa Ramalho de seu nome, ceramista
e artista popular de eleição.
Nos
olhos dela via-se tudo. O génio, a capacidade de ver as coisas de sempre de
outra forma.
Nunca
foi à escola. Quando se diz que o talento nasce do esforço, quase nunca é só
assim. Durante 50 anos, enquanto foi vivo o pai dos seus sete filhos, não
moldou o barro com as suas mãos. Havia que fazer face à vida difícil. Só
depois, aos 68, pôde então dar largas à imaginação.
Os
especialistas falam que sem o saber, Rosa Ramalho fazia arte surrealista, tal o
modo como traduzia o seu imaginário acrescentando a cabeça de um bicho ao corpo
de gente, aumentando ou diminuindo as partes de uma estatura física que via de
forma singular.
Lembro-me
bem daquela tarde. Fomos à casa dela com um escultor nosso amigo que queria
fazer um busto da artista tornada mito pela televisão e pelo poder político do
tempo.
Parecia
uma avó. Gostou do meu irmão e de mim, mas no meu caso não fez favor algum. Foi
à oficina onde modelava e trouxe debaixo do avental – podia algum dos
familiares estar a ver – um Cristo que nos ofereceu.
Não sei
se o miúdo do lado esquerdo da fotografia (o meu irmão) se apercebeu da
qualidade artística da peça. Eu apercebi-me logo e de quanto poderia valer no
ano de 2017.
Às
vezes era bom podermos voltar atrás e recuperarmos algumas coisas. Nós e o
País. Por exemplo, o Estado cumprindo o prometido: a recuperação do terreiro da
fotografia e da casa da artista criando assim o Museu Rosa Ramalho.