O
transcendente visitou-me algumas vezes. Como a qualquer um dos leitores. Nessas
ocasiões algo provoca em nós espanto. E por vezes muda-nos. É como se houvesse
um corte com o passado.
Esse
encontro com o passado acontece muitas das vezes com a visão ou mesmo com a
aparição. Eu sei que o encontro com o sobrenatural tem diversos graus de
impacto emocional. Falarmos com Deus não entra nestas minhas cogitações, os
meus amigos jesuítas fiquem descansados acerca da minha saúde mental.
Até
porque infelizmente não sou religioso. Quando falo em acontecimentos marcantes,
próximos da ruptura com o que já se foi, falo da leitura de um bom livro, de
uma conversa que não se esquece. Coisas assim.
Por
exemplo, de quando li O Homem que Olha do Moravia, ou vi no cinema o A Filha de
Ryan de David Lean. Ou quando toquei pela primeira vez o corpo nu de uma
mulher.
O que é
que estás a dizer? Não te ouço, Zuckerberg... Ah! Descansa. Apenas vou falar de
testemunhos pessoais mas partilháveis por todos. Que toda a gente possa
traduzir para a sua própria vida.
Deixa-me
pensar, Zuckerberg. Já sei o que escolher: a aparição de 1990 – era eu um adolescente.
O hotel onde hoje estou hospedado, o Beverly Wilshire, em Los Angeles, também
não me deixa muita margem de manobra em matéria de recordações marcantes.
Lembro-me
de nesse ano, uma mulher linda "mais brilhante do que o Sol" olhar
nos meus olhos, sorrir nos seus olhos, e dizer com os lábios mais fantásticos
que alguma vez o Chiado viu: "Qual a cor do preservativo que queres?”
Olhei para aquele anjo e não sei porquê lembrei-me da deputada comunista muito
em voga naquele tempo – a Odete Santos. Não tinha nada a ver.
Sei que
no dia seguinte, depois de uma noite de oração e muita descoberta metafísica,
dei à Vivian (era esse o nome dela) o cartão da minha mãe do Continente para
comprar roupa no Rodeo Drive. O vestido de cor castanha e fogo-de-artifício
branco foi nesse dia que caiu do céu.
À noite
fomos à ópera em São Francisco. Ela levou uma toilette vermelha que tinha usado
no filme Pretty Woman e fomos na camioneta do Barraqueiro. Durante a viagem
conversamos muito. A Vivian era uma mulher muito experiente e quis dar-me
alguns conselhos sobre o sexo feminino. Que nunca me deixasse seduzir pelas
mulheres russas. Principalmente quando louras de cabelo comprido e a tocar
piano. Primeiro tinha de usar o meu charme – que ela achava eu possuir às
carradas – e assim proceder à conversão delas aos meus princípios. Depois revelou-me
algo de trágico a acontecer no meu futuro mas que não poderia dizer mais porque
era segredo. Prometi-lhe o cartão da minha mãe da Loja das Meias e ela então
falou-me que alguém iria atentar contra a minha vida. Preveniu-me ainda que via
armas no meio daquele presságio. Não percebi nada até uns anos mais tarde uma
mulher apontar uma pistola à minha cabeça por eu não querer mais nada com ela.
Mas
voltando à Vivian e à ópera: ela em forma de anjo com o rosto em cima do meu ombro,
a música a ecoar naquele teatro, e as lágrimas… Sérgio… Sérgio… Acorda que são
horas da escola! Abri os olhos e vi a minha mãe como sempre preocupada comigo.
Que horas são? – perguntei. Oito horas. Dentro de meia hora tinha a minha
professora de francês a lembrar-me que no mundo não há só corpos celestes.
Se fui
o mesmo de sempre na aula de francês? Não, não fui. Nunca falei tanto francês
na minha vida e em feux d'artifice e na apparition de la Sainte Vivian. Uma
autêntica epifania aquele sonho.
1 comentário:
´Brilhante Francisco!!
Essas suas aparições fazem as delícias de quem as lê e fazem a pele derramar gotas de suor ...
Um beijo
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