sexta-feira, 22 de setembro de 2023

E Camilo a rir disto tudo...



A recente polémica acerca da estátua de Camilo Castelo Branco, erigida em frente à antiga cadeia da relação do Porto, fez-me revisitá-la com o cuidado que o assunto parecia merecer. Olhei-a de todos ângulos, fotografei-a, e procurei reconhecer nela os argumentos em contenda. 


Continuo sem perceber a razão de tanto alvoroço surgido de uma carta subscrita por 37 “notáveis” do Porto e logo atendida favoravelmente pelo presidente da câmara da cidade. Ou muito me engano ou a missiva foi preparada com vagar e intencionalidade calculadas, sob os desinteressados ofícios do Dr. Rui Moreira.


Há, por isso, um eventual ajuste pessoal a envolver a situação. A surpresa reside, apenas, nas personalidades que não pertencem a esta história, alguns de prestígio insuspeito, e que mesmo assim assinaram o referido documento.


Quem olha de perto a obra da autoria do artista plástico Francisco Simões, vê o Camilo (facilmente reconhecível por todos) abraçado a uma mulher despida. Repare-se que a estátua em causa assinala os 150 anos de publicação do Amor de Perdição. É, pois, o conceito de amor e a personalidade do escritor que servem de guia à sua criação. O amor e Camilo. Mais nada.


Ora, não é fácil definir o sentimento que nos submerge na intimidade de outrem, seja através da escrita, da música, das artes plásticas ou de qualquer outra forma de expressão. O amor tem milhentas formas de ser evocado, e isso, em vez de constituir uma amparo para o artista, muitas vezes é apenas razão de dificuldade acrescida. A ventura da polissemia representativa apenas reside na cabeça dos detratores do costume.


Camilo Castelo Branco foi, e é, uma personagem difícil. Filho de um aristocrata que renegou a mãe do futuro escritor por causa da sua condição social (em termos oficiais, Camilo é filho de mãe incógnita), sempre taciturno, corajoso na forma de ser, solitário mesmo quando acompanhado pelas mais importantes figuras da cultura portuguesa do século XIX, dono de uma genialidade única no uso da palavra escrita, polemista temível e, para além disso, necessitado de dinheiro a vida toda.


Pois é este homem, artista da cabeça aos pés – solitário como a sua vocação de escritor pressupõe – que procurava nas mulheres a proteção e o colo de que sempre necessitou. Repetindo, deste modo, um padrão de comportamento reconhecível em quase todos os colegas de ofício, nacionais ou não.


Será então Ana Plácido apenas mais uma mulher-amante, igual a todas as outras que veio a abandonar? Obviamente que não: Plácido foi, durante muito tempo, alguém inatingível na vida de Camilo, por ela sofreu horrores, veio a ser preso, até que a amada ascendeu ao grau máximo a que um homem dependente (à luz do modo de viver no século XIX) podia aspirar identificar na sua companheira: a esposa, a mulher e a mãe.


Não é, por todas estas razões, Ana Plácido a mulher retratada na estátua. Ou melhor, também é, juntamente com as outras a que Camilo se entregou. Mas mais do que alguém em concreto, quem ali está é o rosto e os seios e o regaço que o acolheram por esse norte fora em noites de grande intranquilidade.


Por isso é que o escultor Francisco Simões retratou os dois seres metidos num invólucro a fazer lembrar o útero ou a casca de um ovo, dessa forma isolados do mundo cá fora, ocultos de tudo e de todos – a mãe-mulher a salvá-lo dele mesmo.


Não sei se Rui Moreira aceita esta minha interpretação. O que eu sei é que o comportamento de pequeno ditador que evidenciou durante este caso constituiu o momento mais triste da sua passagem pela câmara do Porto.

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