domingo, 19 de janeiro de 2020

A morte triste do Giovani


O caso do homicídio do jovem cabo-verdiano Luís Giovani Rodrigues é mais interessante em termos de estudo do inconsciente social do que apressadamente se poderia pensar. O crime ocorrido numa cidade pequena, aparentemente pacata — onde estudam no instituto politécnico local jovens oriundos de 70 países — foi motivo de atenção mediática permanente nas últimas semanas. 
Bragança, o burgo onde as coisas se passaram, é um caso de sucesso no que à integração de diferentes povos e diferentes culturas diz respeito. Mas a morte do rapaz cabo-verdiano fez abanar os alicerces aparentemente sólidos da socialização conseguida até aqui. Não por razões raciais, a questão ultrapassa essa facilidade de catalogação, mas por causa das mudanças que o viver colectivo brigantino vem descobrindo no interior de si mesmo.  
De uma sociedade rural, em que a maioria das pessoas vivia numa situação de pobreza, passou-se em algumas décadas apenas, para uma estratificação comunitária assente no crescente rendimento da agricultura direcionada para alguns produtos de excelência e, principalmente, na revolução proporcionada pela abertura da escola às diferentes classes sociais.  
Claro que nem todos aproveitaram essa democratização do ensino de igual forma: os filhos da emergente classe média foram os grandes beneficiados. Muitos daqueles que provinham de famílias sem hábitos culturais, continuaram irredutíveis às mensagens de incentivo que lhes eram transmitidas pelas escolas e mantiveram-se à margem desta mudança. Sem que a culpa fosse só deles — afinal a progressão social não se faz do dia para a noite. 
Entretanto, os jovens que tinham objectivos bem definidos — tanto por eles como pelas suas famílias — entraram em grande número nas faculdades de medicina, engenharia, biotecnologia, economia, direito e outras.
A somar a este contingente, há a considerar ainda os que escolheram o Instituto Superior Politécnico de Bragança para estudar. E, depois, os estrangeiros: eslavos, africanos, do Médio Oriente , da Ásia, da América do Sul. 
E é aqui que a mais elementar das perguntas ganha sentido: onde se encontram nos períodos de ócio, todos eles, os que frequentam o ensino superior e aqueles que só estudaram enquanto foram obrigados pelas políticas governamentais? Na noite de Bragança, é óbvio. 
De acrescentar, em termos de informação histórica, que tem profunda tradição a vida nocturna da capital nordestina. 
O resto da explicação do triste fim do Giovani é do conhecimento ou intuição de todos. O comportamento ainda originário das tradições rurais que se materializa nas célebres esperas em grupo, na pseudo-honra recuperada pelo exercício da violência, na desconfiança em relação aos que são oriundos de um mundo diverso, no comportamento machista da sociedade brigantina em geral, necessariamente se irá confrontar, numa via de duplo sentido, com aqueles que podem vir a constituir ameaça ao sentimento de posse seja a que matéria, espaço ou pessoas se referir. 
Fica só a faltar o álcool: às duas da manhã, rapazes e raparigas estão em grande número embriagados. E entre eles, conforme seria de esperar, estão os que se sentem à margem de tudo e de todos: das jovens mais bonitas, dos candidatos às profissões invejadas, dos novos doutores, dos objectivos que ultrapassem o efeito da madrugada. Não estudaram, a escola nada lhes dizia e agora pouco há a fazer. A não ser combinar uma espera aos primeiros pobres coitados que saiam na rifa da noite, munidos de um poder que não têm. Mas isso eles fingem não saber.
Em resumo: duas nações, duas culturas, coincidentes no tempo e inconciliáveis entre si. 
Wundt, Jung ou Lévi-Strauss quando trabalharam a psicologia social contactaram com realidades próximas desta.

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