sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Desistência sentida


Não, não… vou-me embora. Isto não se faz. Ou bem que é Verão ou Outono. Agora uma e coisa e outra em simultâneo, é abusar da credulidade das pessoas. 

Saí de casa a pensar que ia abrir caminho por entre o nevoeiro, suportar o vento a sulcar-me rugas na face, vestir camisola por cima de camisola. E ao invés de tudo isto um sol luminoso de fim de tarde a aquecer as almas dos jovens namorados. 

Os deuses do Olimpo a brincarem comigo. 

No areal mulheres deitados ao sol gozam os últimos dias de Outubro. Das roupas escuras a tapar o peito feminino nem vê-las naquela alameda imensa. 

Não, não estou p’ra isto. Vou voltar p’ra perto do croché da Nanda e ver o Trio de Ataque. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Carta a um adolescente só


Sempre que te sentires só, o mais triste de todos os homens, sem amigos, sem um projecto de vida definido, escreve. 

Mas escrever sobre o quê? — pergunta o jovem adolescente. Sobre ti mesmo. As tuas inseguranças, a razão delas, o tanto que te fazem sofrer. 

Dessa forma poderás entender-te melhor, racionalizando a tristeza, o desconhecimento de ti e dos outros. 

Para além de que através da escrita terás sempre a possibilidade de escolher situações diferentes, homens e mulheres fascinantes, locais de sonho. Depressa compreenderás que a vida é teatro, mentira consentida, e aceitável por isso mesmo. 

Faz desta estratégia de superação a identidade inteligível em cada página. Com uma condição: tens de ler para poderes escrever. Não é possível uma coisa sem a outra. Se assim não fizeres nada compreenderás. Nem as tuas faculdades nem as falhas dos outros.  

A este propósito: observa a vida olhando-a de forma compreensiva. Senta-te numa esplanada e aprecia-a sem que nada te escape. Ou então quando fores a um concerto, a uma inauguração, a uma viagem, a um velório. E pensa em cada pormenor. 

Por último, não escrevas nem vivas qualquer tentativa de perfeição. A vida não é assim, nem as pessoas nem tu. O que torna tudo mais interessante. Sobra espaço para a criatividade e para o livre arbítrio. 

E não te esqueças: sê feliz. Escreve e faz e escreve. Mesmo quando trabalhares num laboratório, num museu, numa escola. 

E ama. A ti e à vizinha do terceiro andar. Ela sente mais a solidão do que tu. Porque não escreve.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Jornalismo d'antanho


Hoje deu-me para vasculhar fotografias antigas. Esta data de 2006 e foi feita na comemoração do centenário do Notícias dos Arcos. Num tempo irrepetível.

Os jornais ainda eram todos impressos. Os leitores, na sua maioria, tornavam-se assinantes e os correios levavam as notícias a casa. As páginas tipografadas eram lidas por causa do interesse nos assuntos locais mas também em resultado de um hábito herdado dos pais e dos avós. 

Foram verdadeiras escolas da leitura e da escrita. Os grandes nomes de hoje viram os seus textos publicados pela primeira vez nestes jornais. 

Na fotografia que encima este texto, vêem-se uns cinco ou seis directores (e proprietários) desses órgãos de comunicação social. Deles restam dois vivos.

Alguns dos integrantes do grupo transformaram-se em nomes de ruas, de equipamentos sociais e de muita saudade. 

Um dos dois directores vivos é meu pai. Vai ainda viver muitos anos, eu sei. Entre outras razões porque gosto muito dele. Para aqueles que não o reconheceram, é o primeiro dos convivas sentados (à esquerda). Ao lado do célebre Frederico Pinheiro — o homem que foi incumbido de me ensinar a nadar, coitado dele. 

Teria tanto a dizer sobre esta gente e este tempo. Infelizmente os contemporâneos já se esqueceram da importância deles na vida social e cultural das vilas e cidades. 

Ah! Agora me lembro: o meu pai faz hoje anos. Percebe-se, assim, este roteiro de saudade. Com a certeza de que o futuro só existe quando alicerçado naquilo que já passou. Parabéns, meu pai. O meu futuro também és tu.

sábado, 9 de outubro de 2021

O Zeca de Sacavém


Apresento-vos o meu cão. É giro, não é? Chama-se Zeca e é muito vivo, sempre em rebuliço pela casa toda. Adoptei-o em Sacavém e desde o dia em que o trouxe estabelecemos uma ligação muito forte. Quando chego do trabalho está sempre à porta tentando saber de quem se trata. Quando me vê larga numa correria doida até aos aposentos da Dona Lurdinhas na tentativa de não me incomodar. É realmente um cão fantástico. No dia em que alguém aceitar levá-lo vou sentir uma grande tristeza.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

O piano


Depois deste tempo todo sem ir a uma sala de espectáculos, assisti por estes dias a um concerto do Filipe Pinto-Ribeiro com a Orquestra de Câmara de São Petersburgo. Dos violinos e dos outros instrumentos de cordas não vou falar porque nada trouxeram de assinalável para esta crónica, para além da execução esperada de uma harmonia exercitada até à exaustão. Mas o piano, meus senhores, valeu por tudo o resto: pelos russos todos, pela decoração do teatro, pela noite de Outono, pelo público que não vi. Daquele instrumento musical, imponente desde logo na sua dimensão, saía um som que não era um só – parecia a reunião de todos os possíveis, mas numa intensidade forte, capaz de nos interpelar fisicamente. Nota a nota, tecla a tecla, a música que dele saía era desconcertante porque nada na sua fluidez se tecia da mesma forma que no som anterior. Filipe Pinto-Ribeiro, e isto só é possível nos grandes pianistas, modelava em cada nota da pauta mil e uma formas de a cumprir – e na maioria das vezes de modo tão amplo quanto a vida toda.
Já era tempo da maldita pandemia nos permitir uma trégua na vontade adiada de espectáculos com esta qualidade.