Os dias passam iguais, clientes a discutir connosco, os filhos a reclamarem atenção, o trânsito em fila compacta, os vizinhos do 6º esquerdo a contestarem a má educação do prédio e, de repente, é Agosto, a cidade grande a entrar de férias, as praias do Algarve reclamadas pelos miúdos na primeira semana e, por fim, Viana.
A Romaria da Nossa Senhora D’Agonia está quase a começar. Quem não tiver vivido no Alto-Minho não entende nada disto. Sorri da preconceituosa rusticidade destas terras e abandona-se por momentos na marquise que delimita a gaiola onde vive.
Pensa que sabe e não sabe nada. Aqueles que não se relacionam, nem que seja em pensamento, com o espaço, o sítio onde fomos e onde, de algum modo, sempre seremos, não se conhecem. A identidade que passamos a vida a procurá-la, quase sempre sem sucesso, fica coxa, amputada da razão de ser.
Assumir a identidade de ser de Viana no mês da festa é o melhor que nos pode acontecer. Não pela festa propriamente dita, mas pelas ruas que voltamos a percorrer e pela visão dos rostos dos homens e das mulheres com quem partilhamos dias e noites, muitas vezes sem os conhecer, mas que o sentimento de geração aproxima hoje mais que antes.
Alguns continuamos a acompanhar na televisão a debitar opiniões sobre tudo, outros vemo-los nas inaugurações apadrinhadas pelo senhor presidente ou pelos membros do governo. Muitos esqueceram Viana. O mundo deles passou a ser outro e nele não tem lugar o chão verde e azul da terra original.
Idiotas. Não percebem o básico nestas coisas da identidade. O reconhecimento nacional acontece se houver antes o do lugar onde se nasceu. Só é considerado ilustre aquele que tem história, tem tempo percorrido nos caminhos de casa, da escola, dos amores primeiros. Dessa forma, poderá acalentar o desejo de ser recebido com banda de música e foguetes no largo principal.
Há tantos que assim não fizeram e que caíram no esquecimento regional e nacional. O melhor é nem referir nomes porque seria uma lista muito extensa.
Mas para além das ruas revisitadas e das pessoas que frequentavam os mesmos sítios há uma realidade cuja importância ultrapassa as outras: a família e a sala e os corredores e os quartos da casa-mãe. E os homens e as mulheres, ainda novos, que habitavam aqueles espaços.
Nas marquises das cidades grandes não vivem as pessoas da casa de família. A maioria nem saberia utilizar o metro que vai do Terreiro do Paço aos Restauradores. E, no entanto, foram eles que nos criaram e ensinaram tanta coisa.
As Festas da Senhora D’Agonia também servem para isto. Para os reencontrar, vivos ou mortos, eles estão lá de todas as formas possíveis. Nunca nos abandonarão enquanto houver Viana, a Amália cantar Homem de Melo, os barcos continuarem a sair da barra levando de passeio os santos da sua devoção, as mulheres jovens de pele bronzeada da praia envergarem os trajes de suas mães.
E assim prossegue Viana. Terra a quem a natureza proporcionou as melhores condições possíveis para o desenvolvimento. Infelizmente, décadas de inação e de decisões políticas erradas condenaram a cidade e a região à estagnação, isto se tivermos em conta o crescimento das outras cidades minhotas. De todas.
Por isso é que desta vez resolvi escrever sobre os vianenses que vivem noutras terras. A especificidade dos atuais cursos universitários – os que Viana não tem –, a maior especialização requeridas pelas grandes empresas – as que Viana (salvo raras exceções) apenas conhece pelo que a televisão mostra – conduziram à transferência do viver das pessoas para as casas prolongadas pelas marquises.
Um dia destes ainda vou de TGV com a Senhora D’Agonia em 1ª classe até à estação de Viana.
(Estou muito reconhecido ao Dr. António Pimenta de Castro – a quem o destino recente fez dele uma espécie de irmão meu – por, entre outras coisas, ter escrito um texto sobre o meu querido pai (morreu em 2022), jornalista e entusiasta de Viana e do Alto-Minho, na publicação A Falar de Viana, coordenada pelo amigo e diretor da Biblioteca Pública de Viana do Castelo, Dr. Rui Faria Viana, a quem também agradeço)